quarta-feira, 20 de maio de 2009

arte: fátima queiroz

Cabeça

Quando eu sofria dos nervos
não passava debaixo de fio elétrico,
tinha medo de chuva, de relâmpio,
nojo de certos bichos que eu não falo
pra não ter que lavar minha boca com cinza.

Qualquer casca de fruta eu apanhava.
Hoje que sarei tenho uma vida e tanto:
já seguro nos fios com a chave desligada
e lembrei de arrumar pra mim esta capa de plástico,
dia e noite eu não tiro, até durmo com ela.

Caso chova, tenho trabalho nenhum.
Casca, mesmo sendo de banana ou de manga,
eu não intervo, quem quiser que se cuide.
Abastam as placas de atenção! que eu escrevo
E ponho perto. Um bispo quando tem zelo
Apostólico, é uma coisa charmosa.

Não canso de explicar isso pro pastor
da minha diocese, mas ele não entende
e fica falando, “ minha filha, minha filha” ,
ele pensa que é woman´s lib, pensa
que a fé ta lá em cima e cá em baixo
é mau gosto só. É ruim, é ruim
ninguém entende. Gritava até parar,
quando eu sofria dos nervos.

Adélia Prado



Pele

Um favo de mel na boca
um torrão de sal na anca
roubam para a pele
o calor de animais
simples e vorazes soltos
como numa catedral

pele de asno
pele de mel
pele de água

Olga Savary


Dúvida

Estou cego a todas as músicas
Não ouvi mais o cantar da musa.
A dúvida cobriu a minha vida
como o peito que me cobre a blusa.
Já a minha nenhuma cena soa
Nem o céu se me dasabotoa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como a língua cobre a saliva
Cada dente que sai da gengiva.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o sangue cobre a carne crua,
Como a pele cobre a carne viva
Como a roupa cobre a pele nua.
Estou cego a todas as músicas
E se eu canto é como um som que sua.

Arnaldo Antunes


Câmera Indiscreta

olho o olho que me olha
olho o olho
olho a lua
o olho que me olha olha mas não vê

olho o olho que me olha
olho a rua a lua a rua a rua a rua
eu atravesso a rua
o olho que me olha olha mas não sabe o quê

olho o olho no espelho
olho de loba
o olho que me olha olha mas não lê

vou olhando olho a olho corpo a corpo
olho ilhas
olho dentro de você

Ademir Assunção


Anímico

Nasceu no meu jardim um pé de mato
que dá flor amarela.
Toda manhã vou lá pra escutar a zoeira
da insetaria na festa.
Tem zoado de todo jeito:
tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre.
é pata, é asa, é boca, é bico,
é grão de poeira e pólen na fogueira do sol.
parece que a arvorinha conversa.

Adélia Prado


Improviso

nuvens
são
cambraias

pétalas
tuas
faces

brisa
que farfalha
nas varandas
altas

cristalina
orvalho
diamantes
de água

se não posso
vê-la
nos píncaros
de jade

sob a lua
ei-la
no pavilhão
de jaspe

Haroldo de Campos


Frei Tito

Frei Tito de Alencar Lima
foi preso em novembro de 1969, acusado de oferecer infra-estrutura a Carlos Marighela, Tito é submetido a palmatória e choques elétricos, no Deops, em companhia de seus confrades. Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontra em mãos da Justiça Militar, é retirado do presídio Tiradentes e levado para a Operação Bandeirantes, mas tarde conhecida como DOI-Codi, à rua Tutóia.
Durante três dias, batem sua cabeça na parede, queimam sua pele com brasa de cigarros e dão-lhe choques por todo o corpo, em espeical na boca "para receber a hóstia" , gritam os algozes. Fernando Gabeira preso ao lado tudo percebe. Querem que Tito denuncie quem o ajnudou a conseguir o sítio de Ibiúna para o Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) em 1968, e assine depoimento atestando que dominicanos participaram de assaltos a bancos.
No limite da sua resistência, Tito corta com gilete que lhe emprestaram para fazer a barba, a artéria interna do cotovelo esquerdo. É socorrido a tempo no hospital militar, do Cambuci. As incessantes torturas não abrem a boca do frade de 28 anos, mas lhe cindem a alma. Cumpre-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: "Se não falar, será quebrado por dentro , pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas vísiveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço da valentia" .
Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovane Bucher, sequestrado pela VPR de Lamarca, Tito é banido do Brasil pelo governo Médici.
De Santiago do Chile ruma para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior. Nas ruas da capitão francesa ele "vê" o espectro de seus toruradores. ...contorce-se em calafrios sob o fantasma o delegado Fleury. Sua mente naufraga em delírios. No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se move. Entre o Céu e a Terra, sob a copa de um álamo, balança o corpo de Frei Tito dependurado numa corda.
Do outro lado da vida ele encontrara a uidade perdida. Deixa registrado em seus papéis que "é melhor morrer do que perder a vida".

Frei Betto

Refrão à Moda de Brecht

contra
o bloqueio de
cuba
mas também
contra
a contumácia “dinossáurea”
de-mário soares “dixit” -
fidel

contra o bombardeio do
golfo
(guerra de mísseis teleterríveis
sob as estrelas pasmas de nínive)
mas também
contra
a empáfia loucoloquente de
sadam hussein

contra
o fundo monetário
internacional fundo
usuário
no interno mais profundo
de geryon (dante, inferno)
mas também

contra
a corrupção voraginosa de
/burocratas e políticos
(políticos venais
/mandarins-tecnocratas
de colarinho branco
assentados sobre nádegas ociosas)
brasileiros

contra
os ensandecidos xiitas
palestinos
mas também
contra
a surdez míope dos judeus
fundamentalistas

ó favônio
vento que favorece
divino na rosa-
-rosa dos ventos-
quando poderemos
ser inteiramente
a favor?

Haroldo de Campos
Çaiçuçáua*

sempre o verão
e algum inverno
nesta cidade sem outono
e pouca primavera

tudo isto te vê entrar
em mim todo inteiro
e eu em fogo vou bebendo
todos os teus rios

com uma insaciável sede
que te segue às estações
no dia aceso

em tua água sim está meu tempo
meu começo. E depois nem poder ordenar:
te acalma, minha paixão

*(do tupi): amor, amado

Olga Savary
Todos estes poemas foram musicados e magistralmente interpretados por Madan, em seu CD de estréia em 1997.

Sutilezas & Sortilégios de Madan
Haroldo de Campos

Madan, algo de mágica e dança no nome emblema, canta, compõe, violoniza. Intervém, com timbre próprio e dom peculiar, no canoro diálogo poema (letra)/canção: canoro, lírico, mas também satírico, na boa tradição dos cancioneiros d´amor trovadorescos e das medievais(desabusadas) cantigas d´escárnio e mal-dizer. Posso dar testemunho (antes de mais nada) quanto aos textos meus que musicou e que canta. Tramou habilmente minhas palavras em seus sons pontilhistas, claros, raros (como no Li T´ai Pó – improviso – poema que “transcriei” a partir do original chinês); soube, também, urdí-las, cáusticas, ouriçadas, paródicas, irônicas, no seu violoneio engajado, quando teve de lidar com textos como o combinatório “Mundo (Mindo) Livre (Luvre)”, destabocado e derrisório ou o brechtiniano/horaiciano “refrão à maneira de”. Palmas e salvas para ele, Madan, com suas mágicas de voz violonada e suas danças de letra-voz.som.


Madan tem um incrível talento para transformar poemas em canções. As palavras fluem fáceis, nada forçado. Com sua sensibilidade especial, consegue descobrir a sonoridade e o ritmo dos versos, vestindo-os com melodias ora doces, ora melancólicas. Som, palavra e voz se harmonizam neste CD repleto de belezas. Um presente para os ouvidos sensíveis.

Ademir Assunção





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