sexta-feira, 25 de março de 2011

Visão

Foto: Fátima Nascimento



o olho que vê
espreita
o outro

somos vistos
nem sempre sentidos

humanos
desumanos

riso
pranto
choro

vida à deriva
ou não

leme na mão
(melhor)

somos como barcos
na imensidão das águas
ou ancorados no chão


fátima nascimento
http://fatimanascimento.blogspot.com/







Caminhos de Água
ROGERIO SANTOS

as escolhas que faço não pesam
se bobear, estão mais para flutuar

enluam, chovem, molham, escorrem
...
as minhas simples escolhas
seguem caminhos de água

lavam e levam coisas e pessoas
são de matar e matar a sede

não conheço aridez
que não seja pisar os pés
em beira de rio e de praia
ROGERIO SANTOS






BANZO



carrego em meu lombo
várias máculas onomásticas

sou Zé, filho de Edward
um desterro sem quilombo
e sobre meu nome
a Cruz

sou nenhum
mulato negro índio
ninguém tingido d’água
salgada vindo

mesmo depois de liberto
sapatos a luzir
— inédita condição —
um ilhéu
que o destino não quis
soteropolitano

um grapiúna no sul-
maravilha quase
impecável
sem marcas
cicatrizes
não ungido
sem excesso
de melanina

algo assim próximo à matéria
alva que se tinge o mundo
visão última
dos que erram o alvo
e encontram
a morte


[foto: Pierre Verger]

edson cruz
http://sambaquis.blogspot.com

quarta-feira, 16 de março de 2011

r e i m u d o (n)




eram milhões de vezes soçobrando
interstícios de universo centrífugo
do rei que emudecera
palavras amaldiçoadas degeneram
hipocrisia assolando singelezas
o rei senta elegantemente sobre seu trono
tentando abafar retratos incendiados
ultrajantes
engasgos preteridos incuráveis
oráculos invertidos pelas cinzas diminutas
sacudidas nas ampulhetas ilusórias
dos fenômenos descartados nos
jogos de azar
tabuleiro sem nuances desamados
castelo de amarguras desbotadas
ofegando sentenças renunciadas pela vítima
reinado de orquídeas prostradas no parapeito
contemplam escoadouro da dignidade e da descendência
louros reptilianos dourados de ofuscar distintivo
mascaram nitidezes na incidência das frutas
hipnotizadas pelo sopro
sim, havia livros nas estantes nos instantes
descalculados da potencialidade ansiada
e personagens dançando sobre prosas infindáveis
repousadas no colo da cortesã madrugada
apaixonados sobre pontes entre um caco de vidro e outro
houve voos partidos dentro de v i d a s
n
sementes brotando na festa, graças e améns murchados
entusiasmo acovardado por desencontros
enroscados em lençóis úmidos
lágrimas sobre línguas
cidades que caminharam dentro de nós
sinais indecifráveis de Tibiriçá
lampião se apaga sob angicos
como os olhos encerram a pétala decorada
no templo arruinado por hostilidades
pintura de abaetés na pele do amanhecer
tingindo beijos transtornados que se arredam
do marco zero aos pés de Paulo
mas o rei apressado pelas aniquilações
corre ao revés com cetro no verbo
reflexos de cordeiros encharcados
claridade desamparada pelas portas certas
angústia coçando os pés quebradiços
desligamento com a sacralidade do minuto perpétuo
mergulhado no girassol segredado em cada peito
ininterruptamente asfixiado
pingo indissolúvel na xícara de café
magoada pela queda
cai rei de copas por baixo da mesa
embriagado e coxo
recolhendo versos escorregadios
que se movem entre casas brancas e pretas
armaduras despertadas nas torres trepidantes
artifícios enxadristas para a desnutrição
oferecidos em banquete sensual
coroa de diamantes incrustados em ouro
velha velhíssima
que tomba em um xeque-mate
dentro do silêncio perturbável de todos os mesmos dias


beatriz bajo

sexta-feira, 11 de março de 2011

poema bíblico

http://arturgomes-fotografia.blogspot.com/

do barro a carne
da costela adão
do teu corpo eva
todo trigo pão


fosse a fruta
fruto farto
felicidade
tua voz seria
fogueira acesa
no teu corpo santo
como farol
de lua
pra espantar
quebranto


federico baudelaire
http://federicobaudelaire.blogspot.com/





Disforme


Perdi os meus modos
Rasguei os modismos
Quebrei a moldura
Que molestava meu rosto.
Esfarelei as moléculas
Me reverei em cubos
Cones, cilindros
Seios nos olhos
Olhos nas coxas
Boca no sexo
Céu na boca
Língua nos ares
Comendo as moscas,
Palavras na sopa
Da área do barulho.
As múmias se levantam
Das pinturas cubistas
Tropeçam nas formas
Com a cara no concreto,
Ossos por todos os lados
Almas a navegar no céu,
Batucada com ossos
Umbigada de vento
Beijo de sopro mordido
No perfume que veste
A caveira ambulante
A mulher de cubos
Encaixada nos fósforos
Que ascende a alma
Riscando a vida
Na chama que chama
A vida que ascende e apaga
Num sopro só.
Quero me virar em cubos
Tinta, fogo, chama
Na cama, no ventre
De frentre, pra trás.....
No cais do País do Navegar
Vejo o barco voando
No sopro do vento
Penetrando as nuvens
Despindo os mares
Na fúria das marés
Que batem nos meus pés....


Alcinéia Marcucci
http://artedafemea.blogspot.com/

A união azulada de nossas íris deixaram para a noite da estrada percorrer a saudade de cada intenso momento em que existes na minha vida (presente ou não). Quis as coxas anêmicas me dando apoio feito travesseiro... deixar o vinho confundir as pupilas... me permitir a paz que só tu me trouxeste em tão pouco tempo de convívio, em tantos anos de presença em mundo.
A felicidade de te rever iguala-se à tristeza de te ver partir.
"The scars of your love remind me of usThey keep me thinking that we almost had it all
The scars of your love they leave me breathlessI can’t help feeling" ("Rolling in the deep" - Adele)


ana luisa guerra

quarta-feira, 2 de março de 2011

terra de santa cruz





oh! my brazil ainda em alto mar cabral quando te viu foi logo gritando: terra à vista! e de bandeja te entregando pra união democrática ruralista.

ê fome negra incessante
febre voraz gigante
ê terra de tanta cruz

onde se deu primeira missa
índio rima com carniça
no pasto pros urubus

por aqui nem só beleza
nesses dias de paupéria
nação de tanta riqueza
país de tanta miséria

terra de santa cruz
ao batizarem-te
deram-te o nome:
posto que a tua profissão
é abrir-te em camas
dar-te em ferro
ouro
prata
rios
peixes
minas
mata
deixar que os abutres
devorem-te na carne
o derradeiro verme

salgado mar de fezes
batendo na muralhas
do meu sangue confidente
quem botou o branco
na bandeira de alfenas
só pode ser canalha
na certa se esqueceu
das orações dos penitentes
e da corda que estraçalha
com os culhões de tiradentes


salve lindo pendão que balança
entre as pernas abertas da paz
tua nobre sifilítica herança
dos rendez-vous de impérios atrás

meu coração
é tão hipócrita que não janta
e mais imbecil que ainda canta:
ou
viram no ipiranga às margens plácidas
uma bandeira arriada
num país que não levanta

só desfraldando a bandeira tropicalha
é que a gente avacalha
com as chaves dos mistérios
dessa terra tão servil
tirania sacanagem safadeza
tudo rima uma beleza
com a pátria mãe que nos pariu

bem no centro do universo
te mando um beijo ó amada
enquanto arranco uma espada
do meu peito varonil
espanto todas estrelas
dos berços do eternamente
pra que acorde toda essa gente
deste vasto céu de anil
pois enquanto dorme o gigante
esplêndido sono profundo
não vê que do outro mundo
robôs te enrabam ó mãe gentil

telefonaram-me
avisando-me que vinhas
na noite uma estrela
ainda brigava contra a escuridão
na rua sob patas
tombavam homens indefesos
esperei-te 20 anos
ate hoje não vieste à minha porta


o poeta estraçalha a bandeira
raia o sol marginal quarta feira
na geléia geral brasileira
o céu de abril não é de anil
nem general é my brazil
minha verde/amarela esperança
portugal já vendeu para frança
e coração latino balança
entre o mar do dólar do norte
e o chão dos cruzeiros do sul

o poeta esfrangalha a bandeira
raia o sol marginal sexta feira
nesta porra estrangeira e azul
que há muito índio dizia:

meu coração marçal tupã
sangra tupy & rock and roll
meu sangue tupiniquim
em corpo tupinambá
samba jongo maculelê
maracatu boi bumbá
a veia de curumim
é coca cola & guaraná

o sangue rola no parque
o sonho ralo no tanque
nada a ver com tipo dark
e muito menos com punk
meu vício letal é baiafro
com ódio mortal de yank

ó baby a coisa por aqui não mudou nada
embora sejam outras siglas no emblema
espada continua a ser espada
poema continua a ser poema

neste país de fogo & palha
se falta lenha na fornalha
uma mordaz língua não falha
cospe grosso na panela
da imperial tropicanalha

não metam neste planos
verdes/amarelos
meus dentes vãos/armados
nem foices nem martelos
meus dentes encarnados
alvos brancos belos
já estão desenganados
desta sopa de farelos

meto meus dedos cínicos
no teu corpo em fossa
proclamando o eu ainda possa
vir a ser surpresa
porque meu amor não tem essa
de cumer na mesa
é caçador e caça mastigando na floresta
todo tesão que resta desta pátria indefesa

ponho meus dedos cínicos
sobre tuas costas
vou mastigando bostas
destas botas neoburguesas
porque meu amor não tem essa
de vir a ser supresa
é língua suja e grossa
visceral ilesa
pra lamber tudo que possa
vomitar na mesa
e me livrar da míngua
desta língua portuguesas

artur gomes
http://artur-gomes.blogspot.com/



terça-feira, 1 de março de 2011

Do amor e seus silêncios



No destempero e ardências
da fúria inaugural
a palavra sem proveito
(verbalização de corpos)

No rito já maturado
do caminho reconhecido
a muda comunhão
(frêmito de carne e espírito)

Urgências mitigadas
os silêncios primordiais
já agora interpretáveis
(epifania outonal)


O silêncio dos espelhos

(lembrando Borges)

Nus e silêncios
coabitam meus espelhos
(mergulho
e
espanto)
abismos refletidos
nova e (irre)conhecida
história


Memória


Em meu dedo
o teu dedal
(tento, mãe
costurar tua memória
prender-te ao que me resta)
Incertos pontos
que a vista embaçada
não deixa urdir


Pensamentos luxuriosos

Ver-te.Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Hilda Hilst


Pensava nele
quando a seda do vestido
tocou-lhe as coxas
eriçando-lhe os pêlos
(asas a roçar o espírito
tocha a incendiar a carne)

Pensava nele
quando a voz de Maria Callas
alcançou a nota mais aguda
- L’atra notte in fondo al mare –
invocando Mefistofele
(setas fálicas a zumbir junto aos ouvidos
aromas de sândalo a embebedar os sentidos)

De tanto nele pensar
Devorou a si própria
l u x u r i o s a m e n t e
(espírito só carne)


Dias de ira

Ira furor brevis est
Horácio

No furor mais insano
dos ardores intensos
a marca da traição
: revoltos sentidos

Nos braços da ira
a lava das palavras
tatua impropérios
: inesperada queimadura

(por fim)
Compaixão e ungüentos
compressas frias
gestos de paz
: ardências já cinzas

Extraídos de RETRATOS FALHADOS (São Paulo: Escrituras, 2008).
Exemplar doado por Aricy Curvello para a Biblioteca Nacional de Brasília.


Meu Pai – Retrato Falado

Da palavra escrita, tudo ignora
acha que ler demais faz mal
à saúde e aos olhos
(à semelhança de Caeiro
acredita apenas no que vê e vive
nas árvores, nos pássaros, na Tv)
Elegeu, durante oito décadas
algumas (poucas) verdades
imarcescíveis

Também à maneira de Caeiro
não acredita em metafísica
(aliás, ignora solenemente o termo)
mas vez ou outra, elege um Menino Jesus
que tanto pode ser o seu médico
(compreende suas dores – sábio para sempre)
alguém que lhe fale em espanhol
ou aquele que lhe diga apenas o que deseja ouvir

Na memória auditiva
preservou frases imutáveis
válidas para todas as ocasiões
(tantas vezes repetidas
até serem transformadas em verdade)

Não acredita em fantasmas
nem que o homem chegou à lua
Odeia políticos e política
(o Presidente é o culpado por tudo)

No plano dos afetos
os pais e os irmãos
a primeira namorada
a companheira definitiva
os filhos e os netos
dois ou três amigos de infância
(nenhum na velhice – já morreram todos)

Algumas (poucas) paixões
:
fotografar
conduzir automóveis
criar passarinhos
vangloriar-se de seus (ingênuos) feitos

Não aceita que lhe falem da velhice
(nenhuma de suas mazelas, acredita,
dela é decorrente)

Um homem frugal
de pensamento concreto
(o que nós vemos das cousas são as cousas)
O mundo resume-se
à sua ética particularista e particularíssima
(o mundo – e o corpo – como vontade)


10 de junho

Olhos e carne a beber o verde-rubro
bandeira escancarada à emoção.

Vinho
(será ele o luso símbolo
ou o sangue que ferve e incendeia
este pendão?).

Saudade
mordendo feito bicho
feito tempo, feito chama.

Orgulho
raça amálgama de raças
cravos de abril rasgando a história
língua pátria outra para milhões

Camões
nem é preciso que o digas
nem compêndios, calendários ou cantigas
apenas o sangue a rugir em campanário
rubro lembrete
mais do que nunca hoje é dia
de sentir-se português.


Dalila Teles Veras
dalilatv@alpharrabio.com.br