segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

(Re)fluxo

Arte Fátima Queiroz



A palavra almeja, conquista
Ignora a lei da usura
Estampa nas caras, tritura
Apolos, apelos, a cura
A palavra mistura – recicla
Língua aguerrida
Curita
Traspassa o globo, cultu(r)a
Cega de um olho
Orbita
A palavra irrompe, esquerdista
(Des)conserta sob auspício
Saliva, veneno de cobra
Refaz-se soro ofídico
A palavra impõe-se laço
Margeia, forja Spaço
Mergulha, cabe-se abismo
Fogueia, cumpre-se ato
A palavra lambe (e-)mundos
(Re)fluxo, expande segundo
Corrompe flores de aço
Cavalga até moribundo
A palavra pppppulsa.



Lou Vilela
http://nudezpoetica.blogspot.com/

Leila Miccolis



PENA DE MORTE

Eram bastante bons
aqueles tempos de ódio,
em que planejávamos nossos assassinatos,
pelo simples prazer de nos vingarmos:
eu te via com os dedos na tomada,
tu me vias sufocada pelo gás.
Tempos em que sorrias ao atravessar a rua,
e eu achava graça em ser atropelada;
tempos em que queríamos fazer um filho,
para espancarmos juntos,
nos dias de ócio;
em que eu te servia de escarradeira,
em vez de cozinheira e passadeira.
Depois, veio o amor,
que é como um lenço em que se assoa,
ou mãe que chicoteia e nos perdoa.
Hoje afago-te as corcovas
e lustro-te as botas novas.


REFERENCIAL

"Solteira de aceso facho
precisa logo de macho;
se é nervosinha a casada
só pode ser mal trepada;
viúva cheia de enfado
tem saudade do finado;
puta metida a valente
quer cafetão que a esquente".
Mulher não vive sem homem.
A prova mais certa disto
é que até as castas freiras
são as esposas... de Cristo.
Tal regra é tão extremista
que não contém exceção:
quem sai dela é feminista,
fria, velha ou sapatão".

E é com essa bagagem de preconceitos adquiridos
que chega-se à conclusão,
na separação de amores doloridos,
de que não houve culpados.
Só feridos.


TRÊS NÚMEROS DE MÁGICA

O espetáculo começa:
faço sair da cartola
televisão a cores,
automóveis
e imóveis
em 180 prestações.
Depois te serro ao meio no caixão,
para salvar-te a seguir:
surges inteiro e pareces tão ileso
que nem dá para notar-se a castração.
Por último me cobres — abracadabra —
e tiras da vagina objetos contudentes
que fizeram a minha vida e o meu hímen
complacentes.

PACIÊNCIA
Hoje, não passei tua roupa,
não encerei o chão
não lavei a louça
não sacudi o capacho.
Olho pro teto
e espero
que a casa venha abaixo.

ATIRADOR DE FACAS

Arrancar as vendas
e acompanhar,
de olhos abertos,
a trajetória do punhal,
cravado em nosso corpo, em nosso peito,
a cada amor desfeito.

TENTATIVA DE SUICÍDIO

Foi ao toalete,
e cortou os sonhos
a gilete.


TOCAIA

Quando te encontro sem que te assustes,
sem que te encoste contra a parede,
sem que puxes o cabelo,
desesperado,
sem que peças o último pedido,
como um condenado desperto na madrugada da execução,
sem que te sintas sufocado e preso entre dois andares,
sem que te firam vidros e te cortem pulsos,
pressinto ser inútil a emboscada.

NOVO AMOR

Meu coração nunca pára
pra comparar, solta amarras,
vive seu tempo presente:
se ferido, em mim se ampara;
mas quando sara e se sente
contente, fica eloqüente,
feito algazarra de araras.
POEMA AO MAIS RECENTE AMOR
Estar entre teus pêlos e dedos,
entre tua densidade,
neste transpirar sob medida
aos teus gemidos.
Estar entre teus trópicos,
entre o teu desejo e o meu prazer,
beber parte de teus líquens e teus rios
percorrendo-te da foz até a origem,
e pura a cada amor partir mais virgem.


BONS TEMPOS ou
SAUDOSA MALOCA...


Namoro antigo: titia
na sala bordava um pano,
tomava conta, e ainda havia
entre nós dois... um piano...

Pra se mostrar, a vigia
tocava um rondó cigano,
tão mal, que ela enrubescia,
se rias de algum engano...

Por fim, como despedida,
a mais ousada bravata:
um beijo na minha tez.

E após a tua saída,
eu, titia e mais a gata,
surubávamos as três...

SEM DIVÃ

Você fala bonito
sobre fases sexuais
— orais, anais, vaginais —
mas,
cadê que as faz?...

DOS MALES O MENOR...

Se te chamo de putinha
sou machista e indecorosa.
No entanto, se não chamo,
você não goza...


COERÊNCIA

Sei que me fazes mal,
mas prefiro tal
à tua ausência.
Nesta loucura imensa
à lucidez me rendo:
na vida, eu aprendi, dose a dose,
que, neurose, é tudo o que não se aceita,
querendo...
BISSEXUALISMO
Teus pentelhos raspados
arranham
feito barba mal-feita.


FORA DE FORMA

De amor é fácil falar,
opinar, teorizar,
mas viver é que são elas...
Portanto não acredite
nesse povo tagarela
que somente dá palpites.
Nem agrida quem discorda
ou quem chama de calhorda
a nossa forma de vida,
só por ser controvertida.
Mais lúcidos somos nós:
eles se juntam somente
a uma multidão de gente
pra fingir que não estão sós.
DES CALÇA
para Glauco Mattoso

É tão fetichista,
que, ao ver meu pé nu,
berrou: — se vista!


SUPERHERÓTICOS

Enquanto o Incrível Hulk
cresce na parte de cima
verde que nem perereca,
a pobre parte de baixo,
vermelhinha de vergonha,
não rasga nem a cueca.
Já o Homem Invisível
tem um troço tão encolhido
que ganhou este apelido.
E o Homem Aranha? Coitado!
Dia e noite, noite e dia
só na luta contra o mal
deve ter teias no pau...
Êta turminha sem sal!
Não é ridículo?
Ninguém agüenta mais os Super Homens,
com seus cintos de utilidade
e estreitas mentalidades...
Homens com maiúsculos agás,
"gagás".
Chega dos valores desta escala:
muito falo e pouca fala.
Se afinal é preciso mudar tudo,
que se tire então, do homem, o H mudo.



galo gatos rede madrugada

césar castro - wermer além da alma




na varanda o varal vazio
o corpo rola na rede
em madrugada de frio

o galo canta no quintal ao lado
e o seu canto
atravessa as paredes da manhã
benvinda

os gatos trepam no muro
e gemem
como felinos no cio


fedra margarida
world of the woman
http://fedramargarida.blogspot.com

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

eu sou o teu avesso





sou a filha da vaca
mas não troco minha mãe
por diva nenhuma

eu sou a neta da puta
mas estou com a minha ave
em carne e unha

eu sou o teu avesso
a língua da morte
a ruptura do conforto
fedra margarida
negra como corvo
no lado escuro da vida
serei sempre seu estorvo

eu sou o teu avesso
as flores do mal-me-quer
o lado mundano da vida
de pagu a baudelaire

fedra margarida
world of the woman
http://fedramargarida.blogspot.com/



Poema inédito


Olá!

Antes de tudo, quero agradecer-lhe por me aceitar
em seu endereço e até desculpar-me por fazê-lo
assim, de forma meio invasiva. Como dizia o poeta
Lindolfo Bell, o poema se completa no leitor.

Sem o leitor, o poema é apenas um início
ou o indício de algo que pode acontecer. Quando,
vez ou outra, esse encontro de poema e leitor
acontece, realiza-se essa coisa gratificante
que é a construção de um novo sentido ou,
quem sabe, a revitalização de uma idéia de vida,
um ânimo novo. Semanalmente tenho colocado
em minha página na Internet um poema inédito,
no único intuito de buscar novos sentidos
nesse contundente cotidiano pós-humano.

O que mais vale, por certo, não são as palavras
armadas no digital espaço. Mais importante
é o triunfo, mesmo que breve, da poesia.

Com carinho,

Alcides Buss
http://www.alcidesbuss.com/



"o meu verso é um estrago
na linha do meu pescoço
o meu dente, só um bago
o meu corpo, puro osso

minha boca de ariranha
minha mão atropelada
minha ferida medonha
a minha pele rasgada

renasço. a cara lamenta
pelo buraco em que vim
e a minha vida nojenta
explode dentro de mim."

("feio, sujo, maldito", romério rômulo)



arur gomes - pele grafia



fluxus - fátima queiroz

Retratos sem data






Em homenagem a La chambre claire,
de Roland Barthes



I/Rosto de menino

Podia retocá-lo
com o verde desta tarde,
com o verbo deste lápis,
com o vento na janela.

Eis o termo da linhagem:
monstro ou borboleta
arrastando nosso cadáver.

Há um ricto
escondido nessa catástrofe.
O rosto acolhe uma filiação incerta.


Serpente tudonada

Aos hóspedes não convém
senão desfazer as malas
e vigiar as nódoas na parede.

Esgotou-se o tempo
de arranjar a sintaxe
dos talheres,
de repetir o ricto
após o último verso,
de empilhar os jornais
sobre a escrivaninha,
de recolher no pires
o farelo de pão,
de calçar as meias do avesso,
de ajeitar a gravata
dos amigos, de adiar o jardim
para depois dos quarenta.
Aos hóspedes convém esquecer,
conquanto em mim distraídos.
O corpo e as cidades



Das cidades

em geral

De quantas cidades estive
(e não digo as que, de passagem,
guardei apenas uma rubrica
e o rumor do jornal dormido,
nem aquelas em livro escritas
ou contrabando dos amigos,
em cartões-postais e souvenirs)
poucas vestiram este corpo,
camisa feita de encomenda,
sem rugas, pences, rebordos.



De Diamantina

De quantas cidades estive,
Diamantina tem o tamanho
do corpo com que se ama e vive,
com folgas e bolsos largos
para acolher-nos no regaço.
Tem os olhos da altura do homem,
e ruas que arregaçam as mangas,
e pátios de pássaro destros,
e capelas que erguem as saias
para deixar fugir o céu.


Conversa na alfaiataria

Aos meus tios, alfaiates

Aviamento

- Em tal ofício, menos não se admite,
ainda que a obra seja para o cabide,
não descura a severa matemática.

Nem cós nem colarinho aqui se avia
como se fora rol de mercearia,
pois, à roda do metro (diz a prática),

um corpo recusa, menino e agreste,
a cifra com que confirme e ateste
a medida do homem e a sua hora.

- Pouca ou nenhuma serventia terá
o método que queira abolir o azar.
Trata-se de pôr o número à prova,

de repetirum gesto até a diferença,
da lei que todo labirinto ostenta,
até que o olho em horizontes desdobre-o.

Corpo é como ter o mar na gaveta,
um cômodo a cumular nossas perdas,
uma pausa conspirando o relógio.



Das palavras

e dos gestos

Palavras apenas as que contam.
Para histórias do começo,
quando homem falava.

Mesmo um gesto demora,
até que o músculo
substantiva.


De Deus

Quem diria que há?

Por mim ficava longe
que eu não tenho estatura.

O medo de quem vê
pela primeira vez
uma palavra doendo.

fernando fábio fiorese furtado

poemas visuais : fernando fábio fiorese furtado







poemas: fernando fábio fiorese furtado

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

federico garcia lorca



O POETA PEDE AO SEU AMOR
QUE LHE ESCREVA

Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de kordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

( tradução: William Agel de Melo )



ESTE É O PRÓLOGO

Deixaria neste livro
toda a minha alma.
este livro que viu
as paisagens comigo
e viveu horas santas.

Que pena dos livros
que nos enchem as mãos
de rosas e de estrelas
e lentamente passam !

Que tristeza tão funda
é olhar os retábulos
de dores e de penas
que um coração levanta !

Ver passar os espectros
de vida que se apagam,
ver o homem desnudo
em Pégaso sem asas,

ver a vida e a morte,
a síntese do mundo,
que em espaços profundos
se olham e se abraçam.

Um livro de poesias
é o outono morto:
os versos são as folhas
negras em terras brancas,

e a voz que os lê
é o sopro do vento
que lhes incute nos peitos
- entranháveis distâncias.

O poeta é uma árvore
com frutos de tristeza
e com folhas murchas
de chorar o que ama.

O poeta é o médium
da Natureza
que explica sua grandeza
por meio de palavras.

O poeta compreende
todo o incompreensível
e as coisas que se odeiam,
ele, amigas as chamas.

Sabe que as veredas
são todas impossíveis,
e por isso de noite
vai por elas com calma.

Nos livros de versos,
entre rosas de sangue,
vão passando as tristes
e eternas caravanas

que fizeram ao poeta
quando chora nas tardes,
rodeado e cingido
por seus próprios fantasmas.

Poesia é amargura,
mel celeste que emana
de um favo invisível
que as almas fabricam.

Poesia é o impossível
feito possível. Harpa
que tem em vez de cordas
corações e chamas.

Poesia é a vida
que cruzamos com ânsia,
esperando o que leva
sem rumo a nossa barca.

Livros doces de versos
sãos os astros que passam
pelo silêncio mudo
para o reino do Nada,
escrevendo no céu
suas estrofes de prata.

Oh ! que penas tão fundas
e nunca remediadas,
as vozes dolorosas
que os poetas cantam !

Deixaria neste livro
toda a minha alma...

( tradução: William Agel de Melo )


VOLTA DE PASSEIO

Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão para a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.

Com a árvore de tocos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.

Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e mariposa afogada no tinteiro.

Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Asassinado pelo céu !

( tradução: William Agel de Melo )



AR DE NOTURNO

Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

( tradução: William Agel de Melo )

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

afonso romano de santanna




Limites do Amor

Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta



CHEGANDO EM CASA


Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia:

- hoje 22 de agosto de 1994
meu marido perdeu, deste terraço:

mais um pôr de sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.



A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI


A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.


O Homem e a Letra


Depois de Beranger ter visto seus vizinhos virarem rinocerontes
depois de Clov contemplar a terra arrasada e comunicar-se
em monossílabos com seus pais numa lixeira
depois de Gregory Sansa ter acordado numa manhã
transformado em desprezível inseto aos olhos da família
e Kafka não ter entrado no castelo para ele aberto todavia
depois de Carlito a sós na ceia do ano cavando o inexistente
afeto no ouro dós salões
depois de Se Tsuam perder-se não entre as três virtudes
teologais
mas num maniqueísmo banal entre o bem e o mal
depois dos diálogos estáticos de Vladimir e Estragon
na estrada.de Godot
depois de Alfred Prufrock como um velho numa estação
seca contemplando a devastação e incapaz de perturbar o universo
depois dos labirintos de Teseu, Borges e Robbe-Grillet
depois que o lobo humano se refugiou transido na estepe fria
depois da recherche no tempo perdida e de Ulisses perdido
no périplo de Dublin
depois de Mallarmé se exasperar no jogo inútil de seus dados
e Malevitch descobrir que sobre o branco
só resta o branco por pintar
depois dos falsos moedeiros moendo a escrita exasperante
em suas torres devorando o que das mãos de Cronos
gera e degenera
depois da morte do homem e da morte da alma
depois da morte de Deus na Carolina do Norte
antes e depois do depois
aqui estou Eu confiante Eu pressupondo EU erigindo
Eu cavando Eu remordendo
Eu renitente Eu acorrentado Eu Prometeu Narciso Orfeu
órfano Eu narciso maciço promitente Eu
descosendo a treva barroca desse Yo
sem pejo do passado
reinventando meu secreto
concreto
Weltschmerz
Que ligação estranha então havia entre os nós e os nós
de outros eus
entre Deus e Zeus
que estranha insistência que penitência ardente que estúpido
e tépido humanismo
que fragilidade na memória que vocação de emblemas
e carência em mitografar-se
que projectum árduo e cego que radar tremendo pelas veias
que vocação de camuflar abismos e flutuar no vácuo
que reincidente recolocar do vazio no centro do vazio?

Que aconteça o humano com todos os seus happenings
e dadas?
que para total desespero de mim mesmo e de meus amigos
I have a strong feeling that the sum of the parts does not
equal the whole
e que la connaissance du tout précède celle des parties
e com um irlandês aprendo a dividir 22 por 7 e achar
no resto ZERO
enquanto grito sobre as falésias
when genuine passion moves you say what you have to say
and say it hot
Bêbado de merda e fel egresso da Babel e de onde os sofistas
me lançaram
vate vastíssimo possesso e cego guiado pelo que nele há
de mais cego
tateando abismos em parábolas
açodando a louca parelha que avassala os céus
diante do todo-poderoso Nabucodonosor eu hoje tive um sonho:
OOO: INFERNO — recomeçar
Salute o Satana, "Finnegans reven again!"
agora sei que há a probabilidade da prova e da idade
o descontínuo do tímpano e o contínuo
que de Prometeu se vai a Orfeu e de Ptolomeu se vai
a Galileu
Eurídice e Eu, Eu e Orfeu
o feitiço contra Zebedeu Belzebu e os seus


Madness! Madness!"
sim, loucura, mas não é a primeira vez que me expulsam
da República
loucura, sim, loucura, ora direis
enquanto retiro os jovens louros de anteontem


Que encham a casa de espelhos aliciando as terríveis maravilhas
para que vejam quão desfigurado cursava o filho do homem
em seus desertos cheios de gafanhoto e mel silvestre
que venha o longo verso do humano
o desletrado inconsciente
fora os palimpsestos! Mylord é o jardineiro
eis que o touro negro pula seus cercados e cai no povaréu
Ecce Homo
ego e louco
cego e pouco
ébrio e oco
cheio de sound and fury
in-sano in-mundo


Madness! Madness! Madness!
Madness
Summerhill
Weltschmerz
— ET TOUT LE RESTE EST LITTÉRATURE



Os Limites do Autor


Às vezes, ocorre
um autor estar
aquém
— do próprio texto.
De o texto ter-se feito,
além dos dedos,
como gavinha que inventou
a direção de seu verde,
e fonte que minou
o inconsciente segredo.
Um texto ou coisa
que ultrapassa a régua,
a etiqueta e o medo,
copo que se derrama,
corpo que no amor
transborda a cama
e se alucina de gozo
onde havia obrigação.
Enfim, um texto operário
que abandonou o patrão.

Às vezes ocorre
um autor estar aquém
da criação.
O texto-sábio
criando asas
e o autor pastando
grudado ao chão.

— Como pode um peixe vivo
estar aquém do próprio rio?
— Que coisa é esse bicho
que rompe as grades do circo
e se lança na floresta
no descontrole de fera?
— Que coisa é essa
que se enrola?
É fumaça? ou texto?
que se alça do carvão?

Lá vai o poema ou trem
que larga o maquinista
na estação
e se interna no sertão.
Ali o poema
olhado de binóculo
— só de longe tocado —
e o autor, falso piloto
largado na pista ou salas
do aeroporto, atrás do vidro,
enquanto o texto
levanta seu vôo cego
com o radar da emoção.

Enfim,
um poema que vira pássaro
onde termina a mão
ou avião desgovernado
que ilude o autor e a pista
e explode na escuridão.


O Duplo


Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.




Carta aos Mortos


Amigos, nada mudou
em essência.
Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há récordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração , insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.



* Este poema foi recitado na voz de Tônia Carrero no CD "Affonso Romano de Sant'Anna por Tônia Carrero" da Coleção "Poesia Falada".

fonte: http://www.revista.agulha.nom.br

olga savary



“Sou refém de sexo, mas não de homem; me viro muito bem sozinha”

MAR I

para ti queria estar
sempre vestida de branco
como convém a deuses
tendo na boca o esperma
de tua brava espuma.
Violenta ou lentamente o mar
no seu vai-e-vem pulsante
ordena vagas me lamberem coxas,
seu arremesso me cravando
uma adaga roxa.

MAR II

Amo-te, amor-meu-inimigo,
de mim não tendo piedade alguma.
Amo-te, amor-sol-a-pino,
feroz, sem nenhuma sombra.
Estás inteiro em mim
e vou sozinha.
Ao ver-te, amor, minha sorte ficou
como se diz: marcada.
Mar é o nome do meu macho,
meu cavalo e cavaleiro
que arremete, força, chicoteia
a fêmea que ele chama de rainha,
areia.

Mar é um macho como não há nenhum.
Mar é um macho como não há igual
¾ e eu toda água.



SUMIDOURO I


Tocas a fímbria dos desfiladeiros
fruindo a cor do figo e da romã
no nascente e secreto sumidouro.
É tarde nas folhas e nos muros,
nas sombras do tanque de lodo e musgo,
é tarde já, é noite - e o sol vem vindo
e a primavera vindo onde a água
é o mel feroz de pássaros em tua língua,
onde o amor deságua em delta e tudo é fogo.


SUMIDOURO II

Direi então: amor é onde
e junco alto e as dunas soam mais brando
e os frutos cheiram mais e são mais doces,
onde há embriaguez e uma tensão
de corda esticada no limite
e tudo é lasso, onde
as abelhas perdem a ferocidade
sendo mais mel,
onde tudo é ordem e labirinto.


SUMIDOURO III

E onde é o sol mesmo na sombra
porque tudo arde na grama
quando a língua em chama sobe a fonte
do delta das coxas, onde
a vida é prometida nos dardos,
nas setas e espadas.
E é com o mel da tua espuma
que se encontra a arqueologia
dessa água intemporal.
Dou a noite a quem merece o dia
e é com sabedoria que me matas
no claro interstício dessa faca.



Olga Savary

domingo, 20 de fevereiro de 2011

tesouros da poesia e da música brasileira



Águas de Março
Tom Jobim

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol

É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o MatitaPereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira

É o vento ventando, é o fim da ladeira

É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira

É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé

São as águas de março fechando o verão,
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
pau, pedra, fim, caminho
resto, toco, pouco, sozinho
caco, vidro, vida, sol, noite, morte, laço, anzol

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.






A máquina do Tempo

Carlos Drummond de Andrade


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

POESIA | Poemas mortais

ANELITO DE OLIVEIRA -

A Frederico Barbosa
Luís Eustáquio Soares
Narlan Mattos
Jairo Faria Mendes
Joca Wolff
Jomard Muniz de Brito
e Jorge Salomão


1.

É melhor retornar à poesia
É melhor desistir de problematizações supostamente inteligentes para corresponder a demandas de pessoas supostamente inteligentes que são, no fundo, profundamente estúpidas
É melhor não problematizar ideias supostamente interessantes que são, no fundo, profundamente desinteressantes
É melhor retornar à poesia
Seja lá o que isso signifique
Apenas pelo fato de que não consiste em problematizações supostamente inteligentes de que ninguém, obviamente, tomará conhecimento
É melhor retornar à poesia
É melhor retornar ao lugar de onde parti ao lugar onde alguém desinteressado está a ver a vida
Seja lá onde for
É melhor suspender ansiedades burocráticas
É melhor não esperar por nada
Retornar apenas
À poesia
É melhor retornar e não sair mais de lá
Ficar lá
Sozinho
Em meio às coisas sem importância nenhuma
Lá dentro do mundo
Alheio aos espetáculos urbanos


2.


Às vezes alguém compra pão
Numa padaria qualquer que encontra pela frente
Ao final da tarde
Para encontrar algum sentido na vida
Ainda
Às vezes alguém
Sem fome nenhuma
Entra numa padaria qualquer
E pede 100 gramas de salgado
Sem se importar com nomes
Apenas salgados
E uma xícara de café
Para encontrar algum sentido na vida
Ainda
Mesmo que seja por alguns minutos
Só isso


3.


Quando diremos a verdade?
Quando dizer a verdade será melhor que estar empregado?
Quando diremos a verdade mesmo se por isso formos demitidos?
Quando dizer a verdade será melhor que dizer mentiras estratégicas?
Quando diremos apenas a verdade,
Não mais que a verdade,
Só a verdade?


4.


Fede maconha, mas ninguém fuma maconha na rua, na cidade, na região, no estado, no país, em lugar nenhum,
Ninguém assume que fuma maconha aqui, todos são santos, não só não fumam maconha, não usam droga nenhuma, são contra todas as drogas, a começar pela maconha, são contra a discriminalização das drogas no país, inclusive da maconha.
Fede maconha no meio da noite, mas ninguém fuma maconha por aqui, todos são santos, todos são sérios, todos são puros,
E é estranho, portanto, que esteja fedendo maconha nesta hora, que esse cheiro forte atravesse a janela e entre aqui neste quarto, enigmaticamente,
Como se nada tivesse acontecendo.
Como sempre, nada nunca acontece por aqui.
Sempre estivemos em Dogville.


5.


Nada precisa de perfeição.
Como está, está perfeito, tal como pode ser. Mas queremos beleza,
E por beleza entendemos o que somos – beleza é a imagem que cultivamos.
Tudo que não somos, que não é como somos, não nos agrada.
E passamos grande parte da vida a lutar contra o mundo.
Não é uma coisa, ou algumas, que não estão de acordo com nossa ideia de beleza.
O mundo todo é horrível aos nossos olhos.
Mesmo o que dizem que é belo, que todos admiram, acaba por nos desagradar mais
cedo ou mais tarde.
Por isso, destruímos tudo a nossa volta.
A cada olhar, a cada toque, a cada respiro, acionamos nosso ódio contra o mundo.
Não suportamos nada nem ninguém.
No fundo, o que nos dá prazer na vida é a capacidade de matar
Com que nascemos.


6.


Waly tentava escrever o mundo, que não era, nunca foi, passível de ser escrito, escrevível.
Waly ultrapassava o mundo sempre que tentava escrever o mundo – o mundo escapava, automático, nos seus olhos.
Waly, o desejante, ultrapassava o mundo
Ou era – é possível pensar – ultrapassado pelo mundo sempre que tentava, às pressas, escrever o próprio mundo.
Escrevia o caos no lugar do mundo, o outro lado do cosmos, o que estava lá, abaixo do mapa, desconhecido.
Com razão, admirava Merleau-Ponty, o mundo não é alcançável. Alias, nenhuma coisa é alcançável nesta vida – mundo é, na verdade, “mundo”.
Waly queria tirar as aspas não só do mundo, mas de todas as coisas. Waly queria desaspar tudo a sua volta, sobretudo as pessoas, como quem desossa animais, para que tudo fosse agressivamente vivaz.
Nas suas mãos vorazes, tudo urrou - palavras, imagens, sensações – por um instante mais além do que cotidianamente é, tudo deixou de ser e voltou a ser, todavia,
O quase, o suportável, a promessa.
Waly esbarrava na razão e lá se indignava e de lá falava quando tentava, na sua colérica solidão, escrever este mundo.



7.


Não estamos preparados para morrer, tampouco para viver.
Nossa pretensão humana chega ao ponto de ignorar a coisa ridícula que somos, a coisa ignorante que somos, a coisa limitada que somos.
Não estamos preparados para nada.
Ninguém nos preparou para nada.
Um gesto grosseiro nos trouxe aqui. Outro gesto, igualmente grosseiro, nos levará daqui.
Se há algo que queremos evitar é a nossa própria condição humana num mundo cínico. Se há algo que queremos esquecer é o que temos sido.
Temos sido a enganação. Para o mundo. Para os outros. Para nós mesmos. Temos sido o que não somos.
A enganação se consolidou como nossa única condição de ser. Enganar, enganar-se, para ser feliz.
Uma felicidade enganosa.
A enganação é a nova feição da nossa ignorância. A enganação é a velha feição da nossa ignorância.
Ignorantes, desconhecemos nossa própria infelicidade. Ignorantes, rimos, felizes, da cara da nossa infelicidade. Ignorantes, temos vivido a infelicidade como felicidade.
Temos sido a enganação.
Não estamos preparados para morrer, tampouco para viver.
Morreremos ignorantes, como temos vivido, ignorantes.

Anelito de Oliveira
no blog http://anelitodeoliveira.blogspot.com

A relevância dos blogs para a poesia contemporânea



Por Lau Siqueira no sitio Cronopios

Conforme N. Katherine Hayles, no livro Literatura eletrônica - novos horizontes para o literário, "a literatura do século XXI é computacional". Isso já diz muito acerca das reflexões que pretendo neste artigo. Afinal, até mesmo os livros impressos são elaborados e revisados virtualmente. Talvez comece aí a desmistificação da importância do livro impresso neste tempo de velocidades virtuais. Houve uma inversão de valores para que se pudesse compreender alguns instrumentos de mídia virtual e a sua devida importância para a literatura. Não são poucos os canais de divulgação da poesia a partir de um instrumento que hoje podemos reconhecer como utensílio doméstico, o computador pessoal. São sites pessoais, canais de relacionamento, grupos de discussão literária. Tudo no espaço físico da sua residência destinado ao computador ou nos giros tridimensionais do lap-top. Todavia, nenhuma outra ferramenta se mostrou tão valiosa para os poetas e para a poesia que os blogs. Não chamaria isso de inversão de valores, mas até mesmo escritores consagrados mundialmente como José Saramago não abriram mão deste instrumento interativo, para uma relação mais aproximada entre o autor e a diversidade de olhares dos mais diferentes tipos de leitor.

Inicialmente reconhecido como uma ferramenta criada para distrair adolescentes ou no máximo para despertar a criatividade de uma geração de nerds, os blogs foram pouco a pouco se transformando em importantes veículos de comunicação interativa, seja para escritores ou para jornalistas, muito especialmente. Nomes reconhecidos da mídia tradicional, nas duas vertentes do conhecimento aos poucos foram ocupando os melhores espaços na blogosfera com blogs dos mais diversos estilos. Podemos afirmar, sem risco de engano, que com o surgimento dos blogs a poesia foi o gênero mais beneficiado entre todos os gêneros da literatura. O fácil acesso e o fácil manuseio desta ferramenta foi naturalmente conquistando escritores reconhecidos ou desconhecidos. Eles foram percebendo que poderiam focar na sua produção ao invés de preocupar-se, também, com o equilíbrio das tags e das ranhuras de uma tecnologia que vem sendo pensada às fatias e desenvolvendo-se de forma surpreendentemente veloz. Certamente que dentro de algum tempo os blogs representarão uma linguagem superada. No entanto, no final desta primeira década do Terceiro Milênio representam a redenção, a democratização e compreensão dos novos caminhos da poesia contemporânea em qualquer parte do mundo.

Certamente ainda é muito importante lançar um livro. Os e-books, neste sentido, parecem longe da possibilidade de superação da “ácaro-mania”. A paixão pelos livros nos tempos em que a banalização inspira cada vez maiores cuidados com as formas e com os conteúdos ainda é a mesma dos tempos de Proust, quando este clássico francês chegou a afirmar que as melhores lembranças da nossa infância estariam nas imagens colhidas da memória dos primeiros livros que tenhamos lido. Mas, o debate acerca do real e do virtual também nos leva a refletir sobre o fato de ser menos danoso ao futuro da humanidade possuir um mau blog do que publicar um mau livro. (A natureza agradeceria o bom senso.) Ocorre que, a preço de hoje, os nomes mais respeitáveis da poesia contemporânea brasileira (e mundial), independentemente do número de livros que tenham lançado, não abrem mão de manter seus blogs literários. Claro que isso não é uma regra, mas evidentemente é uma realidade inquestionável. Isso não ocorreria se possuir um blog não oferecesse imensas vantagens ao escritor, muito especificamente ao poeta.

Mas, como não existe fenômeno significativo que não gere outro igualmente significativo, destacamos um fator afluente do fenômeno dos blogs que também acende a nossa gula investigativa para uma próxima abordagem. Há uma evidente ascensão (talvez até mesmo uma forte influência) de escritores blogueiros sobre outros escritores ou candidatos a escritores também blogueiros. Especialmente poetas cuja produção foi consagrada publicamente através dos blogs chegam a alcançar níveis respeitáveis de trocas com outros poetas. Logicamente que daí não poderemos extrair interpretações óbvias. Não se trata de autores cronologicamente mais antigos influenciando escritores cronologicamente mais jovens. Trata-se de bons escritores, jovens ou não, influenciando ou trocando influências com outros escritores (jovens ou não) a partir das cartas de navegação oferecidas gratuitamente nos oceanos serenos e profundos da web. Este é um tema sobre o qual estudiosos devem estar se debruçando nos cursos de Letras onde o professorado, de um modo geral, não parou ainda para pensar nos efeitos que teria a internet para a época e para a poesia de Arthur Rimbaud, por exemplo, ou para o nosso condoreiro Castro Alves. Afinal, ambos produziram a parte mais significativa das suas obras com a idade da grande maioria dos jovens desbravadores das possibilidades da internet e das suas ferramentas. Portanto, um novo Rimbaud pode estar inaugurando seu blog exatamente hoje, no Acre, por que não?

Este é um fator que não irá gerar uma demanda de pesquisa apenas daqui a dez ou vinte anos. Não haverá, dada a velocidade dos tempos, oportunidade para distanciamento científico. O próprio conhecimento acadêmico não poderá abdicar de um futuro que já começou para refletir sobre o que está em pleno processo e, até mesmo por isso, operando mudanças culturais bastante acentuadas e influenciando comportamentos nas mais diversas áreas. Sobretudo na literatura e mais ainda na poesia que vai, assim, rompendo a aura de marginalidade para se mostrar detentora de uma imensa camada de admiradores que, na grande maioria, são também militantes da invenção nas portas das milhões de fábricas de miolos onde se processa permanentemente a metalurgia da palavra.

Logicamente que não quero aqui desenvolver um raciocínio definitivo, mas apenas levantar questões relativas ao futuro da poesia a partir de um cânone cada vez mais desmistificado e a partir de uma solução ávida de novas soluções. Mais do que nunca precisamos lembrar a profecia de Cazuza: "o tempo não para." Estamos no tempo em que trocar a roda de uma locomotiva em movimento pode ser um descaminho inevitável para a consolidação de uma geléia cujas expressões maiores devem ser esculpidas não apenas com os hálitos da delicadeza, mas principalmente com a certeza cada vez mais absoluta que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Esta é apenas uma "levantada de bola" para um assunto que nem de perto se esgota por aqui. Afinal, quem escreve e principalmente quem escreve um poema, seja na idade média ou na idade mídia, apenas inicia um processo que se revela e se traduz de diferentes formas no olhar de quem lê, estendendo-se para além das ferramentas mais avançadas e popularizadas, a exemplo dos blogs.

Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS e reside atualmente em João Pessoa-PB. Publicou quatro livros de poemas, participou de algumas antologias, entre elas “Na virada do século – poesia de invenção no Brasil”, publica anualmente seus poemas no Livro da Tribo e mantém o blog Poesia Sim (http://www.poesia-sim-poesia.blogspot.com/). E-mail: lausiqueira@gmail.com

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Assimétrica



Tela de Fabian Perez


sinto o dedo que faz escorrer
a alça pelo meu ombro

cabelos disputam as margens
trianguladas das saboneteiras

impaciente você me canta
a saudade que tento não sentir

ah, se eu disser mais que isso
você me enlaça grosseiro

e eu nem finjo que resisto


(LARAMARAL)
no blog http://ogatodaodete.blogspot.com/

domingo, 13 de fevereiro de 2011

fulinaimagem

sampa - foto: artur gomes


1

por enquanto
vou te amar assim em segredo
como se o sagrado fosse
o maior dos pecados originais
e a minha língua fosse
só furor dos canibais
e essa lua mansa fosse faca
a afiar os verso que ainda não fiz
e as brigas de amor que nunca quis
mesmo quando o projeto
aponta outra direção embaixo do nariz
e é mais concreto
que a argamassa do abstrato

por enquanto
vou te amar assim admirando o teu retrato
pensando a minha idade
e o que trago da cidade
embaixo as solas dos sapatos

2

o que trago embaixo as solas dos sapatos
bagana acesa sobra o cigarro é sarro
dentro do carro
ainda ouço jimmi hendrix quando quero
dancei bolero sampleando rock and roll
pra colher lírios há que se por o pé na lama
a seda pura foto síntese do papel
tem flor de lótus nos bordéis copacabana
procuro um mix da guitarra de santana
com os espinhos da rosa de Noel

artur gomes
http://artur-gomes.blogspot.com/

ReVirando a Tropicália



nada melhor do que poemas do paulo leminski e torquato neto para meditar sobre esse obscuro momento da cultura oficial neste país de fogo e palha


todo louco tem um bairro
que o bairro o trata bem
só falta mais um pouco
para eu ser tratado também

o paulo leminski
é um cachorro louco
que dve ser morto
a pedra a fogo
a pau a pique
senão é bem capaz
o filha da puta
de fazer chover
em nosso piquenique

entre a dívida externa
e a dúvida interna
meu coração comercial
alterna

quando olho nos olhos
sei quando um pessoa
está por dentro
ou estar por fora
quem está por fora
não sustenta
um olhar que demora
diante do meu centro
este poema me olha

ali
se alice ali se visse
quando alice viu e não disse
e alice ali se dissesse
quanta palavra veio
e não desce
ali bem ali
dentro da alice
só alice com alice
ali se parece

paulo leminski


lets play that´s

quando nasci um anjo torto
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo louco torto
com asas de avião
e eis o que o anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre os dentes
vá bicho desafinar o coro dos contentes

e desde que eu sai de casa
trouxe a viagem de volta
cravada na minha mão
enterrada no meu umbigo
dentro fora assim comigo
minha própria condução

todo dia é dia dela
pode ser pode não ser
abro a porta ou a janela
todo dia é dia D

há urubus nos telhados
a carne seca é servida
um escorpião encravado
na sua própria ferida
não escapa
só escapo pela porta de saída

todo dia mais um dia
de amar-te a morte morrer
todo dia menos dia
mais um dia
dia D


Literato cantabile


agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim

do seu início:
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:
só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:
não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento



Andar Andei

não é o meu país
é uma sombra que pende
concreta
do meu nariz
em linha reta
não é minha cidade
é um sistema que invento
me transforma
e que acrescento
à minha idade
nem é o nosso amor
é a memória que suja
a história
que enferruja
o que passou
não é você
nem sou mais eu
adeus meu bem
(adeus adeus)
você mudou
mudei também
adeus amor
adeus e vem
quero dizer
nossa graça
(tenemos)
é porque não esquecemos
queremos cuidar da vida
já que a morte está parida
um dia depois do outro
numa casa enlouquecida
digo de novo
quero dizer
agora é na hora
agora é aqui
e ali e você
digo de novo
quero dizer
a morte não é vingança
beija e balança
e atrás dessa reticência
queremos
quero viver


cogito

eu sou como eu sou
pronome pessoal
intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

sou como eu sou agora
sem velhos segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

sou o que sou presente
desferrolhado
indecente
feito um pedaço de mim

sou o que sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim

torquato neto

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

narciso acha feio o que não é espelho




eu sou a outra parte
que habita dentro do meu outro eu
não a casca da carcaça aqui de fora

o que se vê no espelho
e ó imagem
narciso mergulhado
a própria sombra

o cavalo na folhagem
esse sim é o que se vê na tela
quando a câmera revela
o concreto da outra pessoa que não sou


artur gomes


ela tinha um jeito gal fatal vapor barato

rio das ostras - foto: artur gomes




quando pela primeira vez
em teus mares mergulhei
rio das ostras
gozei de amor e ócio
ainda não havia selvagens vândalos
não seus primitivos
mas outros que vieram
para destruir a tua história
sem pensar ao menos
na arqueologia dos teus ossos

em goyta city tem um esgoto a céu aberto um valão podre que atravessa a cidade que um dia foi chamado de canal campos macaé e a prefeitura de campos dos goytacazes gasta milhões pra enfeitar a podridão

blacky billy


ela tinha um jeito gal
fatal – vapor barato
toda vez que me trepava as unhas
como um gato
cantar era seu dom
chegava a dominar a voz
feito cigarra cigana ébria
vomitando doses dos eu cnto
uma vez só subiu ao palco
estrela no hotel das prateleiras
companheira de ratos
na pele de insetos
praticando a luz incerta
no auge do apogeu
a morte não é muito mais
que um plug elétrico
um grito de guitarra uma centelha
logo assim que ela começa
algo se espelha
na carne inicial de quem morreu


jazz free som balaio


ouvidos negros miles trumpete nos tímpanos
era uma criança forte como uma bola de gude
era uma criança mole como gosma de grude
tanto faz quem tanto não me fez
era uma antiVersão de blues
nalguma nigthe noite uma só vez

pouvidos black rumo premeditando o breque
sampa midinigth ou aVersão de brooklin
não pense aliterações em doses múltiplas
pense sinfonia em rimas raras
assim quando desperta do massificado
ouvidos vais ficando dançarina cara
ao ter-te arte nobre minha musa odara

ao toque dos tambores ecos suburbanos
elétricos negróides urbanóides gente
galáxias relances luzes sumos pratos
delícias de iguarias que algum deus consente
ao gênios dos infernos que arde gemem arte
misturas de comboios das tribos mais distantes
de mútiplas metades juntas numa parte


aartur gomes in carbavalha gumes