A palavra almeja, conquista Ignora a lei da usura Estampa nas caras, tritura Apolos, apelos, a cura A palavra mistura – recicla Língua aguerrida Curita Traspassa o globo, cultu(r)a Cega de um olho Orbita A palavra irrompe, esquerdista (Des)conserta sob auspício Saliva, veneno de cobra Refaz-se soro ofídico A palavra impõe-se laço Margeia, forja Spaço Mergulha, cabe-se abismo Fogueia, cumpre-se ato A palavra lambe (e-)mundos (Re)fluxo, expande segundo Corrompe flores de aço Cavalga até moribundo A palavra pppppulsa.
Eram bastante bons aqueles tempos de ódio, em que planejávamos nossos assassinatos, pelo simples prazer de nos vingarmos: eu te via com os dedos na tomada, tu me vias sufocada pelo gás. Tempos em que sorrias ao atravessar a rua, e eu achava graça em ser atropelada; tempos em que queríamos fazer um filho, para espancarmos juntos, nos dias de ócio; em que eu te servia de escarradeira, em vez de cozinheira e passadeira. Depois, veio o amor, que é como um lenço em que se assoa, ou mãe que chicoteia e nos perdoa. Hoje afago-te as corcovas e lustro-te as botas novas.
REFERENCIAL
"Solteira de aceso facho precisa logo de macho; se é nervosinha a casada só pode ser mal trepada; viúva cheia de enfado tem saudade do finado; puta metida a valente quer cafetão que a esquente". Mulher não vive sem homem. A prova mais certa disto é que até as castas freiras são as esposas... de Cristo. Tal regra é tão extremista que não contém exceção: quem sai dela é feminista, fria, velha ou sapatão".
E é com essa bagagem de preconceitos adquiridos que chega-se à conclusão, na separação de amores doloridos, de que não houve culpados. Só feridos.
TRÊS NÚMEROS DE MÁGICA
O espetáculo começa: faço sair da cartola televisão a cores, automóveis e imóveis em 180 prestações. Depois te serro ao meio no caixão, para salvar-te a seguir: surges inteiro e pareces tão ileso que nem dá para notar-se a castração. Por último me cobres — abracadabra — e tiras da vagina objetos contudentes que fizeram a minha vida e o meu hímen complacentes.
PACIÊNCIA
Hoje, não passei tua roupa, não encerei o chão não lavei a louça não sacudi o capacho. Olho pro teto e espero que a casa venha abaixo.
ATIRADOR DE FACAS
Arrancar as vendas e acompanhar, de olhos abertos, a trajetória do punhal, cravado em nosso corpo, em nosso peito, a cada amor desfeito.
TENTATIVA DE SUICÍDIO
Foi ao toalete, e cortou os sonhos a gilete.
TOCAIA
Quando te encontro sem que te assustes, sem que te encoste contra a parede, sem que puxes o cabelo, desesperado, sem que peças o último pedido, como um condenado desperto na madrugada da execução, sem que te sintas sufocado e preso entre dois andares, sem que te firam vidros e te cortem pulsos, pressinto ser inútil a emboscada.
NOVO AMOR
Meu coração nunca pára pra comparar, solta amarras, vive seu tempo presente: se ferido, em mim se ampara; mas quando sara e se sente contente, fica eloqüente, feito algazarra de araras. POEMA AO MAIS RECENTE AMOR Estar entre teus pêlos e dedos, entre tua densidade, neste transpirar sob medida aos teus gemidos. Estar entre teus trópicos, entre o teu desejo e o meu prazer, beber parte de teus líquens e teus rios percorrendo-te da foz até a origem, e pura a cada amor partir mais virgem.
BONS TEMPOS ou SAUDOSA MALOCA...
Namoro antigo: titia na sala bordava um pano, tomava conta, e ainda havia entre nós dois... um piano...
Pra se mostrar, a vigia tocava um rondó cigano, tão mal, que ela enrubescia, se rias de algum engano...
Por fim, como despedida, a mais ousada bravata: um beijo na minha tez.
E após a tua saída, eu, titia e mais a gata, surubávamos as três...
SEM DIVÃ
Você fala bonito sobre fases sexuais — orais, anais, vaginais — mas, cadê que as faz?...
DOS MALES O MENOR...
Se te chamo de putinha sou machista e indecorosa. No entanto, se não chamo, você não goza...
COERÊNCIA
Sei que me fazes mal, mas prefiro tal à tua ausência. Nesta loucura imensa à lucidez me rendo: na vida, eu aprendi, dose a dose, que, neurose, é tudo o que não se aceita, querendo... BISSEXUALISMO Teus pentelhos raspados arranham feito barba mal-feita.
FORA DE FORMA
De amor é fácil falar, opinar, teorizar, mas viver é que são elas... Portanto não acredite nesse povo tagarela que somente dá palpites. Nem agrida quem discorda ou quem chama de calhorda a nossa forma de vida, só por ser controvertida. Mais lúcidos somos nós: eles se juntam somente a uma multidão de gente pra fingir que não estão sós. DES CALÇA para Glauco Mattoso
É tão fetichista, que, ao ver meu pé nu, berrou: — se vista!
SUPERHERÓTICOS
Enquanto o Incrível Hulk cresce na parte de cima verde que nem perereca, a pobre parte de baixo, vermelhinha de vergonha, não rasga nem a cueca. Já o Homem Invisível tem um troço tão encolhido que ganhou este apelido. E o Homem Aranha? Coitado! Dia e noite, noite e dia só na luta contra o mal deve ter teias no pau... Êta turminha sem sal! Não é ridículo? Ninguém agüenta mais os Super Homens, com seus cintos de utilidade e estreitas mentalidades... Homens com maiúsculos agás, "gagás". Chega dos valores desta escala: muito falo e pouca fala. Se afinal é preciso mudar tudo, que se tire então, do homem, o H mudo.
Antes de tudo, quero agradecer-lhe por me aceitar em seu endereço e até desculpar-me por fazê-lo assim, de forma meio invasiva. Como dizia o poeta Lindolfo Bell, o poema se completa no leitor.
Sem o leitor, o poema é apenas um início ou o indício de algo que pode acontecer. Quando, vez ou outra, esse encontro de poema e leitor acontece, realiza-se essa coisa gratificante que é a construção de um novo sentido ou, quem sabe, a revitalização de uma idéia de vida, um ânimo novo. Semanalmente tenho colocado em minha página na Internet um poema inédito, no único intuito de buscar novos sentidos nesse contundente cotidiano pós-humano.
O que mais vale, por certo, não são as palavras armadas no digital espaço. Mais importante é o triunfo, mesmo que breve, da poesia.
Em homenagem a La chambre claire, de Roland Barthes
I/Rosto de menino
Podia retocá-lo com o verde desta tarde, com o verbo deste lápis, com o vento na janela.
Eis o termo da linhagem: monstro ou borboleta arrastando nosso cadáver.
Há um ricto escondido nessa catástrofe. O rosto acolhe uma filiação incerta.
Serpente tudonada
Aos hóspedes não convém senão desfazer as malas e vigiar as nódoas na parede.
Esgotou-se o tempo de arranjar a sintaxe dos talheres, de repetir o ricto após o último verso, de empilhar os jornais sobre a escrivaninha, de recolher no pires o farelo de pão, de calçar as meias do avesso, de ajeitar a gravata dos amigos, de adiar o jardim para depois dos quarenta. Aos hóspedes convém esquecer, conquanto em mim distraídos. O corpo e as cidades
Das cidades
em geral
De quantas cidades estive (e não digo as que, de passagem, guardei apenas uma rubrica e o rumor do jornal dormido, nem aquelas em livro escritas ou contrabando dos amigos, em cartões-postais e souvenirs) poucas vestiram este corpo, camisa feita de encomenda, sem rugas, pences, rebordos.
De Diamantina
De quantas cidades estive, Diamantina tem o tamanho do corpo com que se ama e vive, com folgas e bolsos largos para acolher-nos no regaço. Tem os olhos da altura do homem, e ruas que arregaçam as mangas, e pátios de pássaro destros, e capelas que erguem as saias para deixar fugir o céu.
Conversa na alfaiataria
Aos meus tios, alfaiates
Aviamento
- Em tal ofício, menos não se admite, ainda que a obra seja para o cabide, não descura a severa matemática.
Nem cós nem colarinho aqui se avia como se fora rol de mercearia, pois, à roda do metro (diz a prática),
um corpo recusa, menino e agreste, a cifra com que confirme e ateste a medida do homem e a sua hora.
- Pouca ou nenhuma serventia terá o método que queira abolir o azar. Trata-se de pôr o número à prova,
de repetirum gesto até a diferença, da lei que todo labirinto ostenta, até que o olho em horizontes desdobre-o.
Corpo é como ter o mar na gaveta, um cômodo a cumular nossas perdas, uma pausa conspirando o relógio.
Das palavras
e dos gestos
Palavras apenas as que contam. Para histórias do começo, quando homem falava.
Mesmo um gesto demora, até que o músculo substantiva.
De Deus
Quem diria que há?
Por mim ficava longe que eu não tenho estatura.
O medo de quem vê pela primeira vez uma palavra doendo.
Condenado estou a te amar nos meus limites até que exausta e mais querendo um amor total, livre das cercas, te despeça de mim, sofrida, na direção de outro amor que pensas ser total e total será nos seus limites da vida.
O amor não se mede pela liberdade de se expor nas praças e bares, em empecilho. É claro que isto é bom e, às vezes, sublime. Mas se ama também de outra forma, incerta, e este o mistério:
- ilimitado o amor às vezes se limita, proibido é que o amor às vezes se liberta
CHEGANDO EM CASA
Chegando em casa com a alma amarfanhada e escura das refregas burocráticas leio sobre a mesa um bilhete que dizia:
- hoje 22 de agosto de 1994 meu marido perdeu, deste terraço:
mais um pôr de sol no Dois Irmãos o canto de um bem-te-vi e uma orquídea que entardecia sobre o mar.
A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI
A primeira vez que entendi do mundo alguma coisa foi quando na infância cortei o rabo de uma lagartixa e ele continuou se mexendo.
De lá pra cá fui percebendo que as coisas permanecem vivas e tortas que o amor não acaba assim que é difícil extirpar o mal pela raiz.
A segunda vez que entendi do mundo alguma coisa foi quando na adolescência me arrancaram do lado esquerdo três certezas e eu tive que seguir em frente.
De lá pra cá aprendi a achar no escuro o rumo e sou capaz de decifrar mensagens seja nas nuvens ou no grafite de qualquer muro.
O Homem e a Letra
Depois de Beranger ter visto seus vizinhos virarem rinocerontes depois de Clov contemplar a terra arrasada e comunicar-se em monossílabos com seus pais numa lixeira depois de Gregory Sansa ter acordado numa manhã transformado em desprezível inseto aos olhos da família e Kafka não ter entrado no castelo para ele aberto todavia depois de Carlito a sós na ceia do ano cavando o inexistente afeto no ouro dós salões depois de Se Tsuam perder-se não entre as três virtudes teologais mas num maniqueísmo banal entre o bem e o mal depois dos diálogos estáticos de Vladimir e Estragon na estrada.de Godot depois de Alfred Prufrock como um velho numa estação seca contemplando a devastação e incapaz de perturbar o universo depois dos labirintos de Teseu, Borges e Robbe-Grillet depois que o lobo humano se refugiou transido na estepe fria depois da recherche no tempo perdida e de Ulisses perdido no périplo de Dublin depois de Mallarmé se exasperar no jogo inútil de seus dados e Malevitch descobrir que sobre o branco só resta o branco por pintar depois dos falsos moedeiros moendo a escrita exasperante em suas torres devorando o que das mãos de Cronos gera e degenera depois da morte do homem e da morte da alma depois da morte de Deus na Carolina do Norte antes e depois do depois aqui estou Eu confiante Eu pressupondo EU erigindo Eu cavando Eu remordendo Eu renitente Eu acorrentado Eu Prometeu Narciso Orfeu órfano Eu narciso maciço promitente Eu descosendo a treva barroca desse Yo sem pejo do passado reinventando meu secreto concreto Weltschmerz Que ligação estranha então havia entre os nós e os nós de outros eus entre Deus e Zeus que estranha insistência que penitência ardente que estúpido e tépido humanismo que fragilidade na memória que vocação de emblemas e carência em mitografar-se que projectum árduo e cego que radar tremendo pelas veias que vocação de camuflar abismos e flutuar no vácuo que reincidente recolocar do vazio no centro do vazio?
Que aconteça o humano com todos os seus happenings e dadas? que para total desespero de mim mesmo e de meus amigos I have a strong feeling that the sum of the parts does not equal the whole e que la connaissance du tout précède celle des parties e com um irlandês aprendo a dividir 22 por 7 e achar no resto ZERO enquanto grito sobre as falésias when genuine passion moves you say what you have to say and say it hot Bêbado de merda e fel egresso da Babel e de onde os sofistas me lançaram vate vastíssimo possesso e cego guiado pelo que nele há de mais cego tateando abismos em parábolas açodando a louca parelha que avassala os céus diante do todo-poderoso Nabucodonosor eu hoje tive um sonho: OOO: INFERNO — recomeçar Salute o Satana, "Finnegans reven again!" agora sei que há a probabilidade da prova e da idade o descontínuo do tímpano e o contínuo que de Prometeu se vai a Orfeu e de Ptolomeu se vai a Galileu Eurídice e Eu, Eu e Orfeu o feitiço contra Zebedeu Belzebu e os seus
Madness! Madness!" sim, loucura, mas não é a primeira vez que me expulsam da República loucura, sim, loucura, ora direis enquanto retiro os jovens louros de anteontem
Que encham a casa de espelhos aliciando as terríveis maravilhas para que vejam quão desfigurado cursava o filho do homem em seus desertos cheios de gafanhoto e mel silvestre que venha o longo verso do humano o desletrado inconsciente fora os palimpsestos! Mylord é o jardineiro eis que o touro negro pula seus cercados e cai no povaréu Ecce Homo ego e louco cego e pouco ébrio e oco cheio de sound and fury in-sano in-mundo
Madness! Madness! Madness! Madness Summerhill Weltschmerz — ET TOUT LE RESTE EST LITTÉRATURE
Os Limites do Autor
Às vezes, ocorre um autor estar aquém — do próprio texto. De o texto ter-se feito, além dos dedos, como gavinha que inventou a direção de seu verde, e fonte que minou o inconsciente segredo. Um texto ou coisa que ultrapassa a régua, a etiqueta e o medo, copo que se derrama, corpo que no amor transborda a cama e se alucina de gozo onde havia obrigação. Enfim, um texto operário que abandonou o patrão.
Às vezes ocorre um autor estar aquém da criação. O texto-sábio criando asas e o autor pastando grudado ao chão.
— Como pode um peixe vivo estar aquém do próprio rio? — Que coisa é esse bicho que rompe as grades do circo e se lança na floresta no descontrole de fera? — Que coisa é essa que se enrola? É fumaça? ou texto? que se alça do carvão?
Lá vai o poema ou trem que larga o maquinista na estação e se interna no sertão. Ali o poema olhado de binóculo — só de longe tocado — e o autor, falso piloto largado na pista ou salas do aeroporto, atrás do vidro, enquanto o texto levanta seu vôo cego com o radar da emoção.
Enfim, um poema que vira pássaro onde termina a mão ou avião desgovernado que ilude o autor e a pista e explode na escuridão.
O Duplo
Debaixo de minha mesa tem sempre um cão faminto -que me alimenta a tristeza. Debaixo de minha cama tem sempre um fantasma vivo -que perturba quem me ama.
Debaixo de minha pele alguém me olha esquisito -pensando que eu sou ele.
Debaixo de minha escrita há sangue em lugar de tinta -e alguém calado que grita.
Carta aos Mortos
Amigos, nada mudou em essência. Os salários mal dão para os gastos, as guerras não terminaram e há vírus novos e terríveis, embora o avanço da medicina. Volta e meia um vizinho tomba morto por questão de amor. Há filmes interessantes, é verdade, e como sempre, mulheres portentosas nos seduzem com suas bocas e pernas, mas em matéria de amor não inventamos nenhuma posição nova. Alguns cosmonautas ficam no espaço seis meses ou mais, testando a engrenagem e a solidão. Em cada olimpíada há récordes previstos e nos países, avanços e recuos sociais. Mas nenhum pássaro mudou seu canto com a modernidade.
Reencenamos as mesmas tragédias gregas, relemos o Quixote, e a primavera chega pontualmente cada ano.
Alguns hábitos, rios e florestas se perderam. Ninguém mais coloca cadeiras na calçada ou toma a fresca da tarde, mas temos máquinas velocíssimas que nos dispensam de pensar.
Sobre o desaparecimento dos dinossauros e a formação das galáxias não avançamos nada. Roupas vão e voltam com as modas. Governos fortes caem, outros se levantam, países se dividem e as formigas e abelhas continuam fiéis ao seu trabalho.
Nada mudou em essência.
Cantamos parabéns nas festas, discutimos futebol na esquina morremos em estúpidos desastres e volta e meia um de nós olha o céu quando estrelado com o mesmo pasmo das cavernas. E cada geração , insolente, continua a achar que vive no ápice da história.
* Este poema foi recitado na voz de Tônia Carrero no CD "Affonso Romano de Sant'Anna porTônia Carrero" da Coleção "Poesia Falada".
“Sou refém de sexo, mas não de homem; me viro muito bem sozinha”
MAR I
para ti queria estar sempre vestida de branco como convém a deuses tendo na boca o esperma de tua brava espuma. Violenta ou lentamente o mar no seu vai-e-vem pulsante ordena vagas me lamberem coxas, seu arremesso me cravando uma adaga roxa.
MAR II
Amo-te, amor-meu-inimigo, de mim não tendo piedade alguma. Amo-te, amor-sol-a-pino, feroz, sem nenhuma sombra. Estás inteiro em mim e vou sozinha. Ao ver-te, amor, minha sorte ficou como se diz: marcada. Mar é o nome do meu macho, meu cavalo e cavaleiro que arremete, força, chicoteia a fêmea que ele chama de rainha, areia.
Mar é um macho como não há nenhum. Mar é um macho como não há igual ¾ e eu toda água.
SUMIDOURO I
Tocas a fímbria dos desfiladeiros fruindo a cor do figo e da romã no nascente e secreto sumidouro. É tarde nas folhas e nos muros, nas sombras do tanque de lodo e musgo, é tarde já, é noite - e o sol vem vindo e a primavera vindo onde a água é o mel feroz de pássaros em tua língua, onde o amor deságua em delta e tudo é fogo.
SUMIDOURO II
Direi então: amor é onde e junco alto e as dunas soam mais brando e os frutos cheiram mais e são mais doces, onde há embriaguez e uma tensão de corda esticada no limite e tudo é lasso, onde as abelhas perdem a ferocidade sendo mais mel, onde tudo é ordem e labirinto.
SUMIDOURO III
E onde é o sol mesmo na sombra porque tudo arde na grama quando a língua em chama sobe a fonte do delta das coxas, onde a vida é prometida nos dardos, nas setas e espadas. E é com o mel da tua espuma que se encontra a arqueologia dessa água intemporal. Dou a noite a quem merece o dia e é com sabedoria que me matas no claro interstício dessa faca.
É pau, é pedra, é o fim do caminho É um resto de toco, é um pouco sozinho É um caco de vidro, é a vida, é o sol É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira Caingá, candeia, é o MatitaPereira É madeira de vento, tombo da ribanceira É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira É a chuva chovendo, é conversa ribeira Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira Passarinho na mão, pedra de atiradeira É uma ave no céu, é uma ave no chão É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho No rosto o desgosto, é um pouco sozinho É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto É um pingo pingando, é uma conta, é um conto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando É a luz da manhã, é o tijolo chegando É a lenha, é o dia, é o fim da picada É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama É o carro enguiçado, é a lama, é a lama É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão, É a promessa de vida no teu coração
É pau, é pedra, é o fim do caminho É um resto de toco, é um pouco sozinho É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão É a promessa de vida no teu coração pau, pedra, fim, caminho resto, toco, pouco, sozinho caco, vidro, vida, sol, noite, morte, laço, anzol
São as águas de março fechando o verão É a promessa de vida no teu coração.
A máquina do Tempo
Carlos Drummond de Andrade
E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: "O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste... vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar, na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene sentimento de morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas
A Frederico Barbosa Luís Eustáquio Soares Narlan Mattos Jairo Faria Mendes Joca Wolff Jomard Muniz de Brito e Jorge Salomão
1.
É melhor retornar à poesia É melhor desistir de problematizações supostamente inteligentes para corresponder a demandas de pessoas supostamente inteligentes que são, no fundo, profundamente estúpidas É melhor não problematizar ideias supostamente interessantes que são, no fundo, profundamente desinteressantes É melhor retornar à poesia Seja lá o que isso signifique Apenas pelo fato de que não consiste em problematizações supostamente inteligentes de que ninguém, obviamente, tomará conhecimento É melhor retornar à poesia É melhor retornar ao lugar de onde parti ao lugar onde alguém desinteressado está a ver a vida Seja lá onde for É melhor suspender ansiedades burocráticas É melhor não esperar por nada Retornar apenas À poesia É melhor retornar e não sair mais de lá Ficar lá Sozinho Em meio às coisas sem importância nenhuma Lá dentro do mundo Alheio aos espetáculos urbanos
2.
Às vezes alguém compra pão Numa padaria qualquer que encontra pela frente Ao final da tarde Para encontrar algum sentido na vida Ainda Às vezes alguém Sem fome nenhuma Entra numa padaria qualquer E pede 100 gramas de salgado Sem se importar com nomes Apenas salgados E uma xícara de café Para encontrar algum sentido na vida Ainda Mesmo que seja por alguns minutos Só isso
3.
Quando diremos a verdade? Quando dizer a verdade será melhor que estar empregado? Quando diremos a verdade mesmo se por isso formos demitidos? Quando dizer a verdade será melhor que dizer mentiras estratégicas? Quando diremos apenas a verdade, Não mais que a verdade, Só a verdade?
4.
Fede maconha, mas ninguém fuma maconha na rua, na cidade, na região, no estado, no país, em lugar nenhum, Ninguém assume que fuma maconha aqui, todos são santos, não só não fumam maconha, não usam droga nenhuma, são contra todas as drogas, a começar pela maconha, são contra a discriminalização das drogas no país, inclusive da maconha. Fede maconha no meio da noite, mas ninguém fuma maconha por aqui, todos são santos, todos são sérios, todos são puros, E é estranho, portanto, que esteja fedendo maconha nesta hora, que esse cheiro forte atravesse a janela e entre aqui neste quarto, enigmaticamente, Como se nada tivesse acontecendo. Como sempre, nada nunca acontece por aqui. Sempre estivemos em Dogville.
5.
Nada precisa de perfeição. Como está, está perfeito, tal como pode ser. Mas queremos beleza, E por beleza entendemos o que somos – beleza é a imagem que cultivamos. Tudo que não somos, que não é como somos, não nos agrada. E passamos grande parte da vida a lutar contra o mundo. Não é uma coisa, ou algumas, que não estão de acordo com nossa ideia de beleza. O mundo todo é horrível aos nossos olhos. Mesmo o que dizem que é belo, que todos admiram, acaba por nos desagradar mais cedo ou mais tarde. Por isso, destruímos tudo a nossa volta. A cada olhar, a cada toque, a cada respiro, acionamos nosso ódio contra o mundo. Não suportamos nada nem ninguém. No fundo, o que nos dá prazer na vida é a capacidade de matar Com que nascemos.
6.
Waly tentava escrever o mundo, que não era, nunca foi, passível de ser escrito, escrevível. Waly ultrapassava o mundo sempre que tentava escrever o mundo – o mundo escapava, automático, nos seus olhos. Waly, o desejante, ultrapassava o mundo Ou era – é possível pensar – ultrapassado pelo mundo sempre que tentava, às pressas, escrever o próprio mundo. Escrevia o caos no lugar do mundo, o outro lado do cosmos, o que estava lá, abaixo do mapa, desconhecido. Com razão, admirava Merleau-Ponty, o mundo não é alcançável. Alias, nenhuma coisa é alcançável nesta vida – mundo é, na verdade, “mundo”. Waly queria tirar as aspas não só do mundo, mas de todas as coisas. Waly queria desaspar tudo a sua volta, sobretudo as pessoas, como quem desossa animais, para que tudo fosse agressivamente vivaz. Nas suas mãos vorazes, tudo urrou - palavras, imagens, sensações – por um instante mais além do que cotidianamente é, tudo deixou de ser e voltou a ser, todavia, O quase, o suportável, a promessa. Waly esbarrava na razão e lá se indignava e de lá falava quando tentava, na sua colérica solidão, escrever este mundo.
7.
Não estamos preparados para morrer, tampouco para viver. Nossa pretensão humana chega ao ponto de ignorar a coisa ridícula que somos, a coisa ignorante que somos, a coisa limitada que somos. Não estamos preparados para nada. Ninguém nos preparou para nada. Um gesto grosseiro nos trouxe aqui. Outro gesto, igualmente grosseiro, nos levará daqui. Se há algo que queremos evitar é a nossa própria condição humana num mundo cínico. Se há algo que queremos esquecer é o que temos sido. Temos sido a enganação. Para o mundo. Para os outros. Para nós mesmos. Temos sido o que não somos. A enganação se consolidou como nossa única condição de ser. Enganar, enganar-se, para ser feliz. Uma felicidade enganosa. A enganação é a nova feição da nossa ignorância. A enganação é a velha feição da nossa ignorância. Ignorantes, desconhecemos nossa própria infelicidade. Ignorantes, rimos, felizes, da cara da nossa infelicidade. Ignorantes, temos vivido a infelicidade como felicidade. Temos sido a enganação. Não estamos preparados para morrer, tampouco para viver. Morreremos ignorantes, como temos vivido, ignorantes.
Conforme N. Katherine Hayles, no livro Literatura eletrônica - novos horizontes para o literário, "a literatura do século XXI é computacional". Isso já diz muito acerca das reflexões que pretendo neste artigo. Afinal, até mesmo os livros impressos são elaborados e revisados virtualmente. Talvez comece aí a desmistificação da importância do livro impresso neste tempo de velocidades virtuais. Houve uma inversão de valores para que se pudesse compreender alguns instrumentos de mídia virtual e a sua devida importância para a literatura. Não são poucos os canais de divulgação da poesia a partir de um instrumento que hoje podemos reconhecer como utensílio doméstico, o computador pessoal. São sites pessoais, canais de relacionamento, grupos de discussão literária. Tudo no espaço físico da sua residência destinado ao computador ou nos giros tridimensionais do lap-top. Todavia, nenhuma outra ferramenta se mostrou tão valiosa para os poetas e para a poesia que os blogs. Não chamaria isso de inversão de valores, mas até mesmo escritores consagrados mundialmente como José Saramago não abriram mão deste instrumento interativo, para uma relação mais aproximada entre o autor e a diversidade de olhares dos mais diferentes tipos de leitor.
Inicialmente reconhecido como uma ferramenta criada para distrair adolescentes ou no máximo para despertar a criatividade de uma geração de nerds, os blogs foram pouco a pouco se transformando em importantes veículos de comunicação interativa, seja para escritores ou para jornalistas, muito especialmente. Nomes reconhecidos da mídia tradicional, nas duas vertentes do conhecimento aos poucos foram ocupando os melhores espaços na blogosfera com blogs dos mais diversos estilos. Podemos afirmar, sem risco de engano, que com o surgimento dos blogs a poesia foi o gênero mais beneficiado entre todos os gêneros da literatura. O fácil acesso e o fácil manuseio desta ferramenta foi naturalmente conquistando escritores reconhecidos ou desconhecidos. Eles foram percebendo que poderiam focar na sua produção ao invés de preocupar-se, também, com o equilíbrio das tags e das ranhuras de uma tecnologia que vem sendo pensada às fatias e desenvolvendo-se de forma surpreendentemente veloz. Certamente que dentro de algum tempo os blogs representarão uma linguagem superada. No entanto, no final desta primeira década do Terceiro Milênio representam a redenção, a democratização e compreensão dos novos caminhos da poesia contemporânea em qualquer parte do mundo.
Certamente ainda é muito importante lançar um livro. Os e-books, neste sentido, parecem longe da possibilidade de superação da “ácaro-mania”. A paixão pelos livros nos tempos em que a banalização inspira cada vez maiores cuidados com as formas e com os conteúdos ainda é a mesma dos tempos de Proust, quando este clássico francês chegou a afirmar que as melhores lembranças da nossa infância estariam nas imagens colhidas da memória dos primeiros livros que tenhamos lido. Mas, o debate acerca do real e do virtual também nos leva a refletir sobre o fato de ser menos danoso ao futuro da humanidade possuir um mau blog do que publicar um mau livro. (A natureza agradeceria o bom senso.) Ocorre que, a preço de hoje, os nomes mais respeitáveis da poesia contemporânea brasileira (e mundial), independentemente do número de livros que tenham lançado, não abrem mão de manter seus blogs literários. Claro que isso não é uma regra, mas evidentemente é uma realidade inquestionável. Isso não ocorreria se possuir um blog não oferecesse imensas vantagens ao escritor, muito especificamente ao poeta.
Mas, como não existe fenômeno significativo que não gere outro igualmente significativo, destacamos um fator afluente do fenômeno dos blogs que também acende a nossa gula investigativa para uma próxima abordagem. Há uma evidente ascensão (talvez até mesmo uma forte influência) de escritores blogueiros sobre outros escritores ou candidatos a escritores também blogueiros. Especialmente poetas cuja produção foi consagrada publicamente através dos blogs chegam a alcançar níveis respeitáveis de trocas com outros poetas. Logicamente que daí não poderemos extrair interpretações óbvias. Não se trata de autores cronologicamente mais antigos influenciando escritores cronologicamente mais jovens. Trata-se de bons escritores, jovens ou não, influenciando ou trocando influências com outros escritores (jovens ou não) a partir das cartas de navegação oferecidas gratuitamente nos oceanos serenos e profundos da web. Este é um tema sobre o qual estudiosos devem estar se debruçando nos cursos de Letras onde o professorado, de um modo geral, não parou ainda para pensar nos efeitos que teria a internet para a época e para a poesia de Arthur Rimbaud, por exemplo, ou para o nosso condoreiro Castro Alves. Afinal, ambos produziram a parte mais significativa das suas obras com a idade da grande maioria dos jovens desbravadores das possibilidades da internet e das suas ferramentas. Portanto, um novo Rimbaud pode estar inaugurando seu blog exatamente hoje, no Acre, por que não?
Este é um fator que não irá gerar uma demanda de pesquisa apenas daqui a dez ou vinte anos. Não haverá, dada a velocidade dos tempos, oportunidade para distanciamento científico. O próprio conhecimento acadêmico não poderá abdicar de um futuro que já começou para refletir sobre o que está em pleno processo e, até mesmo por isso, operando mudanças culturais bastante acentuadas e influenciando comportamentos nas mais diversas áreas. Sobretudo na literatura e mais ainda na poesia que vai, assim, rompendo a aura de marginalidade para se mostrar detentora de uma imensa camada de admiradores que, na grande maioria, são também militantes da invenção nas portas das milhões de fábricas de miolos onde se processa permanentemente a metalurgia da palavra.
Logicamente que não quero aqui desenvolver um raciocínio definitivo, mas apenas levantar questões relativas ao futuro da poesia a partir de um cânone cada vez mais desmistificado e a partir de uma solução ávida de novas soluções. Mais do que nunca precisamos lembrar a profecia de Cazuza: "o tempo não para." Estamos no tempo em que trocar a roda de uma locomotiva em movimento pode ser um descaminho inevitável para a consolidação de uma geléia cujas expressões maiores devem ser esculpidas não apenas com os hálitos da delicadeza, mas principalmente com a certeza cada vez mais absoluta que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Esta é apenas uma "levantada de bola" para um assunto que nem de perto se esgota por aqui. Afinal, quem escreve e principalmente quem escreve um poema, seja na idade média ou na idade mídia, apenas inicia um processo que se revela e se traduz de diferentes formas no olhar de quem lê, estendendo-se para além das ferramentas mais avançadas e popularizadas, a exemplo dos blogs.
Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS e reside atualmente em João Pessoa-PB. Publicou quatro livros de poemas, participou de algumas antologias, entre elas “Na virada do século –poesia de invenção no Brasil”, publica anualmente seus poemas no Livro da Tribo e mantém o blog Poesia Sim (http://www.poesia-sim-poesia.blogspot.com/). E-mail: lausiqueira@gmail.com
por enquanto vou te amar assim em segredo como se o sagrado fosse o maior dos pecados originais e a minha língua fosse só furor dos canibais e essa lua mansa fosse faca a afiar os verso que ainda não fiz e as brigas de amor que nunca quis mesmo quando o projeto aponta outra direção embaixo do nariz e é mais concreto que a argamassa do abstrato
por enquanto vou te amar assim admirando o teu retrato pensando a minha idade e o que trago da cidade embaixo as solas dos sapatos
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o que trago embaixo as solas dos sapatos bagana acesa sobra o cigarro é sarro dentro do carro ainda ouço jimmi hendrix quando quero dancei bolero sampleando rock and roll pra colher lírios há que se por o pé na lama a seda pura foto síntese do papel tem flor de lótus nos bordéis copacabana procuro um mix da guitarra de santana com os espinhos da rosa de Noel
nada melhor do que poemas do paulo leminski e torquato neto para meditar sobre esse obscuro momento da cultura oficial neste país de fogo e palha
todo louco tem um bairro que o bairro o trata bem só falta mais um pouco para eu ser tratado também
o paulo leminski é um cachorro louco que dve ser morto a pedra a fogo a pau a pique senão é bem capaz o filha da puta de fazer chover em nosso piquenique
entre a dívida externa e a dúvida interna meu coração comercial alterna
quando olho nos olhos sei quando um pessoa está por dentro ou estar por fora quem está por fora não sustenta um olhar que demora diante do meu centro este poema me olha
ali se alice ali se visse quando alice viu e não disse e alice ali se dissesse quanta palavra veio e não desce ali bem ali dentro da alice só alice com alice ali se parece
paulo leminski
lets play that´s
quando nasci um anjo torto veio ler a minha mão não era um anjo barroco era um anjo louco torto com asas de avião e eis o que o anjo me disse apertando a minha mão com um sorriso entre os dentes vá bicho desafinar o coro dos contentes
e desde que eu sai de casa trouxe a viagem de volta cravada na minha mão enterrada no meu umbigo dentro fora assim comigo minha própria condução
todo dia é dia dela pode ser pode não ser abro a porta ou a janela todo dia é dia D
há urubus nos telhados a carne seca é servida um escorpião encravado na sua própria ferida não escapa só escapo pela porta de saída
todo dia mais um dia de amar-te a morte morrer todo dia menos dia mais um dia dia D
Literato cantabile
agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto pode ser o fim do seu início agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em minha orla os pássaros de sempre cantam assim, do precipício: a guerra acabou quem perdeu agradeça a quem ganhou. não se fala. não é permitido mudar de idéia. é proibido. não se permite nunca mais olhares tensões de cismas crises e outros tempos está vetado qualquer movimento do corpo ou onde quer que alhures. toda palavra envolve o precipício e os literatos foram todos para o hospício e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca. agora não se fala nada, sim. fim. a guerra acabou e quem perdeu agradeça a quem ganhou.
agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto é o fim
do seu início: Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam nos hospícios. Você não tem que me dizer o número de mundo deste mundo não tem que me mostrar a outra face face ao fim de tudo: só tem que me dizer o nome da república do fundo o sim do fim do fim de tudo e o tem do tempo vindo: não tem que me mostrar a outra mesma face ao outro mundo (não se fala. não é permitido: mudar de idéia. é proibido. não se permite nunca mais olhares tensões de cismas crises e outros tempos. está vetado qualquer movimento
Andar Andei
não é o meu país é uma sombra que pende concreta do meu nariz em linha reta não é minha cidade é um sistema que invento me transforma e que acrescento à minha idade nem é o nosso amor é a memória que suja a história que enferruja o que passou não é você nem sou mais eu adeus meu bem (adeus adeus) você mudou mudei também adeus amor adeus e vem quero dizer nossa graça (tenemos) é porque não esquecemos queremos cuidar da vida já que a morte está parida um dia depois do outro numa casa enlouquecida digo de novo quero dizer agora é na hora agora é aqui e ali e você digo de novo quero dizer a morte não é vingança beija e balança e atrás dessa reticência queremos quero viver
cogito
eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível
sou como eu sou agora sem velhos segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora
sou o que sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim
sou o que sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim
quando pela primeira vez em teus mares mergulhei rio das ostras gozei de amor e ócio ainda não havia selvagens vândalos não seus primitivos mas outros que vieram para destruir a tua história sem pensar ao menos na arqueologia dos teus ossos
em goyta city tem um esgoto a céu aberto um valão podre que atravessa a cidade que um dia foi chamado de canal campos macaé e a prefeitura de campos dos goytacazes gasta milhões pra enfeitar a podridão
blacky billy
ela tinha um jeito gal fatal – vapor barato toda vez que me trepava as unhas como um gato cantar era seu dom chegava a dominar a voz feito cigarra cigana ébria vomitando doses dos eu cnto uma vez só subiu ao palco estrela no hotel das prateleiras companheira de ratos na pele de insetos praticando a luz incerta no auge do apogeu a morte não é muito mais que um plug elétrico um grito de guitarra uma centelha logo assim que ela começa algo se espelha na carne inicial de quem morreu
jazz free som balaio
ouvidos negros miles trumpete nos tímpanos era uma criança forte como uma bola de gude era uma criança mole como gosma de grude tanto faz quem tanto não me fez era uma antiVersão de blues nalguma nigthe noite uma só vez
pouvidos black rumo premeditando o breque sampa midinigth ou aVersão de brooklin não pense aliterações em doses múltiplas pense sinfonia em rimas raras assim quando desperta do massificado ouvidos vais ficando dançarina cara ao ter-te arte nobre minha musa odara
ao toque dos tambores ecos suburbanos elétricos negróides urbanóides gente galáxias relances luzes sumos pratos delícias de iguarias que algum deus consente ao gênios dos infernos que arde gemem arte misturas de comboios das tribos mais distantes de mútiplas metades juntas numa parte