quarta-feira, 23 de setembro de 2009

declaração inteira

tenho dez almas:

uma de carne
onde me exponho aos instintos.

a segunda entrego ao zelador
par que o espanador a inflame.

a terceira
quarta
quinta
sexta
sétima
oitava
entrego-as à mulher amada
para seu domínio completo

a nona carrego comigo
para sustentar o que de solidão exala

a décima
o que sobra dessa solidão


celso borges

Poema obsceno

Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira

Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Maninho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais

Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam
o lado escuro do país- e espreitam.

Ferreira Gullar
Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar



Máquina do Tempo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.

”As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade



Gilda

Não ponha o nome de Gilda
na sua filha, coitada,
Se tem filha pra nascer
Ou filha pra batisar.
Minha mãe se chama Gilda,
Não se casou com meu pai.
Sempre lhe sobra desgraça,
Não tem tempo de escolher.
Também eu me chamo Gilda,
E, pra dizer a verdade
Sou pouco mais infeliz.
Sou menos do que mulher,
Sou uma mulher qualquer.
Ando à-toa pelo mundo.
Sem força pra me matar.
Minha filha é também Gilda,
Pro costume não perder
É casada com o espelho
E amigada com o José.
Qualquer dia Gilda foge
Ou se mata em Paquetá
Com José ou sem José.
Já comprei lenço de renda
Pra chorar com mais apuro
E aos jornais telefonei.
Se Gilda enfim não morrer,
Se Gilda tiver uma filha
Não põe o nome de Gilda,
Na menina, que não deixo.
Quem ganha o nome de Gilda
Vira Gilda sem querer.
Não ponha o nome de Gilda
No corpo de uma mulher.

Murilo Mendes



POEMA PARA O ÍNDIO XOKLENG

Se um índio xokleng
sub
jaz
no teu crime branco
limpo depois de lavar as mãos

Se a terra
de um índio xokleng
alimenta teu gado
que alimenta teu grito
de obediência ou morte

Se um índio xokleng
dorme sob a terra
que arrancaste debaixo de seus pés,
sob a mira de tua espingarda
dentro de teus belos olhos azuis

Se um índio xokleng
emudeceu entre castanhas,
bagas e conchas
de seus colares de festa
graças a tua força, armadilha, raça:
cala tua boca de vaidades
e lembra-te de tua raiva, ambição, crueldade

Veste a carapuça
e ensina teu filho
mais que a verdade camuflada
nos livros de história

Lindolf Bell

(enviado pela pesquisadora urda Kuegler, de Sc.
Em memória do grande poeta catarinense, existe em Timbó, sua cidade natal, o centro de memória Lindolf Bell, onde viveu e onde estão devidamente preservados móveis,objetos,livros, manuscritos ,etc.
A curadora é sua filha Rafaela Heting bell, filha da artista plástica ,a escutora Elke Hering Bell. Rafaela , que cresceu em meio à poesia paterna e à arte materna, galeria de arte de seu pai, é diretora do MAB(Museu de Arte de Blumenau). A galeria do poeta, que foi conhecido marchand chamou-se Açu-Açu.
AÇU - quer dizer "grande", "comprido". Açu-açu: muito grande. Os indígenas repetem a palavra, para dar a noção de muito, de grande, de muitos. Assim, pana-paná, muitas borboletas. Ati-ati: muitas gaivotas.



Terra de santa cruz

ao batizarem-te
deram-te o nome
posto que a tua profissão
é abrir-te em camas
dar-te
em ferro
ouro
prata
rios
peixes
minas
mata
deixar que os abutres
devorem-te na carne
o derradeiro verme

sal gado mar
de feses
bnatendo nas muralhas
do meu sangue confidente
quem botou o branco
na bandeira de alfenas
só pode ser canalha
na certa se esqueceu
das orações dos penitentes
e da corda que estraçalha
com os culhões de tiradentes

salve-lindo pendão
que balança
entre as pernas
abertas da paz
tua nobre sifilítica
herança
dos rendevouz
de impérios atrás

meu coração
é tão hipócrita
que não janta
e mais imbecil
que ainda canta:
ou
viram no Ipiranga
às margens plácidas
uma bandeira arriada
num país que não levanta.

fosse o brazil mulher das amazonas
caminhasse passo a passo
disputasse mano a mano
guardasse a fauna e a flora
da fome dos tropicanos
ouvisse o lamentos dos peixes
jandaias araras e tucanos
não estaríamos assim condicionados
aos restos do sub-humano

só desfraldando a bandeira tropicalha
é que a gente avacalha
com as chaves dos mistérios
desta terra tão servil:
tirania sacanagem safadeza
tudo rima uma beleza
com a pátria mãe que nos pariu

bem no centro do universo
te mando um beijo ó amada
enquanto arranco uma espada
do meu peito varonil
espanto todas as estrelas
dos berços do eternamente
pra que acorde toda esta gente
deste vasto céu de anil
pois enquanto dorme o gigante
esplêndido sono profundo
não vê que do outro mundo
robôs te enrrabam ó mãe gentil

telefonaram-me
avisando-me que vinhas
na noite
uma estrela
ainda brigava
contra a escuridão
na rua sob patas
tombavam homens indefesos
esperei-te 20 anos
até hoje não vieste à minha porta
- foi um puta golpe!

o poeta estraçalha a bandeira
raia o sol marginal Quinta feira
na geléia geral brazileira
o céu de abril não é de anil
nem general é my brazil
minha ver/amarela esperança
portugal já vendeu para a frança
e o coração latino balança
entre o mar de dólar do norte
e o chão dos cruzeiros do sul
o poeta esfrangalha a bandeira
raia o sol marginal Sexta feira
nesta porra estrangeira e azul
que a muito índio dizia:

meu coração marçal tupã
sangra tupi & rock in roll
meu sangue tupiniquim
em corpo tupinambá
samba jongo maculelê
maracatu boi bumbá
a veia de curumim
é coca cola & guaraná

o sonho rola no parque
o sangue ralo no tanque
nada a ver com tipo dark
muito menos com punk
meu vício letal é baiafro
com ódio mortal de yank

ó baby a coisa por aqui
não mudou nada
embora sejam outras
siglas no emblema
espada continua a ser espada
poema continua a ser poema

Artur Gomes
Nação Gýtacá
http://goytacity.blogspot.com/



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