Deixei alguém nesta sala que muito se distinguia de alguém que ninguém se chamava, quando eu desaparecia. Comigo se assemelhava, mas só na superfície. Bem lá no fundo, eu, palavra, não passava de um pastiche. Uns restos, uns traços, um dia, meus tios, minhas mães e meus pais me chamarem de volta pra dentro, eu ainda não volte jamais. Mas ali, logo ali, nesse espaço, lá se vai, exemplo de mim, algo, alguém, mil pedaços, meio início, meio a meio, sem fim.
Paulo Leminski
[do livro Distraídos Venceremos]
Bananas podres
Como um relógio de ouro o podre oculto nas frutas sobre o balcão (ainda mel dentro da casca na carne que se faz água) era ainda ouro o turvo açúcar vindo do chão e agora ali: bananas negras como bolsas moles onde pousa uma abelha e gira e gira ponteiro no universo dourado (parte mínima da tarde) em abril enquanto vivemos
E detrás da cidade (das pessoas na sala ou costurando) às costas das pessoas à frente delas à direita ou (detrás das palmas dos coqueiros alegres e do vento) feito um cinturão azul e ardente o mar batendo o seu tambor queda quitanda não se escuta Que tem a ver o mar com estas bananas já manchadas de morte? que ao nosso lado viajam para o caos e azedando e ardendo em água e ácidos a caminho da noite vertiginosamente devagar? Que tem a ver o mar com esse marulho de águas sujas fervendo nas bananas? com estas vozes que falam de vizinhos, de bundas, de cachaça? Que tem a ver o mar com esse barulho? Que tem a ver o mar com esse quintal? Aqui, de azul, apenas há um caco de vidro de leite de magnésia (osso de anjo) que se perderá na terra fofa conforme a ação giratória da noite e dos perfumes nas folhas da hortelã Nenhum alarde nenhum alarme mesmo quando o verão passa gritando sobre os nossos telhados Pouco tem a ver o mar com este banheiro de cimento e zinco onde o silêncio é água: uma esmeralda engastada no tanque (e que solta se esvai pelos esgotos por baixo da cidade) Em tudo aqui há mais passado que futuro mais morte do que festa: neste banheiro de água salobra e sombra muito mais que de mar há de floresta muito mais que de mar há de floresta Muito mais que de mar neste banheiro há de bananas podres na quitanda e nem tanto pela água em que se puem (onde um fogo ao revés foge no açúcar) do que pelo macio dessa vida de fruta inserida na vida da família: um macio de banho às três da tarde Um macio de casa no Nordeste com seus quartos e salas eu banheiro que esta tarde atravessa para sempre Um macio de luz ferindo a vida no corpo das pessoas lá no fundo onde bananas podres mar azul fome tanque floresta são um mesmo estampido um mesmo grito
E as pessoas conversam na cozinha ou na sala contam casos e na fala que falam (esse barulho)tanto marulha o mar quanto a floresta tanto fulgura o mel da tarde - o podre fogo - como fulgea esmeralda de água que se foi
Só tem que ver o mar com seu marulho com seus martelos brancos seu diurno relâmpago que nos cinge a cintura?
O mar só tem a ver o mar com este banheiro com este verde quintal com esta quitanda só tem a ver o mar com esta noturna terra de quintal onde gravitam perfumes e futuros o mar o mar com seus pistões azuis com sua festa tem a ver tem a ver com estas bananas onde a tarde apodrece feito uma carniça vegetal que atrai abelhas varejeiras tem a ver com esta gente com estes homens que o trazem no corpo e até no nome tem a ver com estes cômodos escuros com esses móveis queimados de pobreza com estas paredes velhas com esta pouca vida que na boca é riso e na barriga é fome
No fundo da quitanda na penumbra ferve a chaga da tarde e suas moscas; em torno dessa chaga está a casa e seus fregueses o bairro as avenidas as ruas os quintais outras quitandas outras casas com suas cristaleiras outras praças ladeiras e mirantes donde se vê o mar nosso horizonte
Ferreira Gullar
PARA UM NEGRO
para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco.
para um negro
a cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
o coração.
EU, PÁSSARO PRETO
eu,
pássaro preto,
cicatrizo
queimaduras de ferro em brasa,
fecho o corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.
NEGRO FORRO
minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.
minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.
FAÇA SOL OU FAÇA TEMPESTADE
faça sol ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
faça sol ou faça tempestade
meu corpo é cercado
por estes muros altos,
— currais
onde ainda se coagula
o sangue dos escravos.
faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
Adão Ventura
Jura secreta 82
tudo que eu quero em outubro
deixar que flua a semana
como flor de lotus que brota
quando se rompe a semente
ou minha língua entre dentes
em tua carne de seda
em tua boca veludo
neste poema nem tudo
cabe de mais abstrato
por tão concreto
que faloco
mo se em meu corpo
estivesse
e jura apenas não fosse
a tua língua tão doce
beijar meus lábios quisesse
artur gomes
http://poeticasfulinaimicas.blogspot.com/
CarNAvalha Gumes
um tiro na cabeça duas facadas na boca do estômago dois tiros no pé quatro tiros no peito e sete nos braços mataram com um balaço esquartejaram o esqueleto no verso do obscuro como se ainda vivêssemos terríveis anos de chumbo e levaram o bumbo pra praça tambores chocalhos cornetas os bobos da corte coitados inocentes palhaços sem graça apenas sorriso amarelo diante a foice o martelo pra obediência da rainha do império do faz de conta nos jardins do mal me quer que não sabem quem foi paulo leminski nem nunca leram charles baudelaire
federico DuBoi
http://federicobaudelaire.blogspot.com/
GO BACK
Você me chama Eu quero ir pro cinema você reclama meu coração não contenta você me ama mas de repente a madrugada mudou e certamentea quele trem já passou e se passou passou daqui pra melhor,foi! Só quero saber do que pode dar certo não tenho tempo a perder
você me pede quer ir pro cinema agora é tarde se nenhuma espécie de pedido eu escutar agora agora é tarde tempo perdido mas se você não mora, não morou é porque não tem ouvido que agora é tarde- eu tenho dito -o nosso amor michou(que pena) o nosso amor, amor e eu não estou a fim de ver cinema (que pena)
Torquato Neto
BANANAS PODRES 4
É a escuridão que engendra o mel ou o futuro clarão no paladar (como quase luz na saliva, e mais: em alguma parte da vida a escuridão engendra o olhar no corpo ansioso de abrir-se à luz)
e o mel que aflui da noite da polpa (e feito dessa noite) fluido podre da polpa da noite do podre(sob a casca) tal como um suicídio ou um alarme ou abafada rotação nas moléculas (e igual que no cosmos cintila) uma balbúrdia de ácidos negros inventando um quase alvorecer na quitanda.
E pense bem: também um tumor é um ponto intenso da matéria viva, de alta temperatura como a gestar um astro de pus(assim se engendram os sóis, os sons no vazio abissal) e assim também as vozes do açúcar (um negro lampejo) que assustam os mosquitos (nuvens deles) pairando no ar dos escusos cantos do depósito de frutas nos fundos da quitanda rua da Alegria esquina de Afogados e que faliu e sumiu para sempre daquela esquina e do mundo, a quitanda, bem como seu dono, o falado Newton Ferreira e seus amigos Zé Dedão, o Cantuária e o Elias,todos que poderiam afirmar que sim, de fato as bananas já estavam passadas, quase inteiramente podres aquela tarde e que ali amontoadas num alguidar fermentavam exalando no ar o doce odor de bananas morrendo o que efetivamente ocorreu na cidade de São Luís do Maranhão ao norte do Brasil por volta de 1940... E foda-se.
FERREIRA GULLAR
PROFISSÃo DE FEBRE
quando chove, eu chovo, faz sol, eu faço, de noite, anoiteço, tem deus, eu rezo, não tem, esqueço, chove de novo, de novo, chovo, assobio no vento, daqui me vejo, lá vou eu, gesto no movimento
paulo leminski
Rural
Plural de boi:
boiada
boiada boi
bovino boi
nada bóia
boi, boiágua
escoa
do campo
pro canto
boicântaro
se amolda
deságua
e crava
no ar
sua cara:
chifre de chofre
rompe, o barro
boicarro.
Armando Freitas Filho
Nenhum comentário:
Postar um comentário