terça-feira, 1 de março de 2011
Do amor e seus silêncios
No destempero e ardências
da fúria inaugural
a palavra sem proveito
(verbalização de corpos)
No rito já maturado
do caminho reconhecido
a muda comunhão
(frêmito de carne e espírito)
Urgências mitigadas
os silêncios primordiais
já agora interpretáveis
(epifania outonal)
O silêncio dos espelhos
(lembrando Borges)
Nus e silêncios
coabitam meus espelhos
(mergulho
e
espanto)
abismos refletidos
nova e (irre)conhecida
história
Memória
Em meu dedo
o teu dedal
(tento, mãe
costurar tua memória
prender-te ao que me resta)
Incertos pontos
que a vista embaçada
não deixa urdir
Pensamentos luxuriosos
Ver-te.Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Hilda Hilst
Pensava nele
quando a seda do vestido
tocou-lhe as coxas
eriçando-lhe os pêlos
(asas a roçar o espírito
tocha a incendiar a carne)
Pensava nele
quando a voz de Maria Callas
alcançou a nota mais aguda
- L’atra notte in fondo al mare –
invocando Mefistofele
(setas fálicas a zumbir junto aos ouvidos
aromas de sândalo a embebedar os sentidos)
De tanto nele pensar
Devorou a si própria
l u x u r i o s a m e n t e
(espírito só carne)
Dias de ira
Ira furor brevis est
Horácio
No furor mais insano
dos ardores intensos
a marca da traição
: revoltos sentidos
Nos braços da ira
a lava das palavras
tatua impropérios
: inesperada queimadura
(por fim)
Compaixão e ungüentos
compressas frias
gestos de paz
: ardências já cinzas
Extraídos de RETRATOS FALHADOS (São Paulo: Escrituras, 2008).
Exemplar doado por Aricy Curvello para a Biblioteca Nacional de Brasília.
Meu Pai – Retrato Falado
Da palavra escrita, tudo ignora
acha que ler demais faz mal
à saúde e aos olhos
(à semelhança de Caeiro
acredita apenas no que vê e vive
nas árvores, nos pássaros, na Tv)
Elegeu, durante oito décadas
algumas (poucas) verdades
imarcescíveis
Também à maneira de Caeiro
não acredita em metafísica
(aliás, ignora solenemente o termo)
mas vez ou outra, elege um Menino Jesus
que tanto pode ser o seu médico
(compreende suas dores – sábio para sempre)
alguém que lhe fale em espanhol
ou aquele que lhe diga apenas o que deseja ouvir
Na memória auditiva
preservou frases imutáveis
válidas para todas as ocasiões
(tantas vezes repetidas
até serem transformadas em verdade)
Não acredita em fantasmas
nem que o homem chegou à lua
Odeia políticos e política
(o Presidente é o culpado por tudo)
No plano dos afetos
os pais e os irmãos
a primeira namorada
a companheira definitiva
os filhos e os netos
dois ou três amigos de infância
(nenhum na velhice – já morreram todos)
Algumas (poucas) paixões
:
fotografar
conduzir automóveis
criar passarinhos
vangloriar-se de seus (ingênuos) feitos
Não aceita que lhe falem da velhice
(nenhuma de suas mazelas, acredita,
dela é decorrente)
Um homem frugal
de pensamento concreto
(o que nós vemos das cousas são as cousas)
O mundo resume-se
à sua ética particularista e particularíssima
(o mundo – e o corpo – como vontade)
10 de junho
Olhos e carne a beber o verde-rubro
bandeira escancarada à emoção.
Vinho
(será ele o luso símbolo
ou o sangue que ferve e incendeia
este pendão?).
Saudade
mordendo feito bicho
feito tempo, feito chama.
Orgulho
raça amálgama de raças
cravos de abril rasgando a história
língua pátria outra para milhões
Camões
nem é preciso que o digas
nem compêndios, calendários ou cantigas
apenas o sangue a rugir em campanário
rubro lembrete
mais do que nunca hoje é dia
de sentir-se português.
Dalila Teles Veras
dalilatv@alpharrabio.com.br
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