quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Retratos sem data






Em homenagem a La chambre claire,
de Roland Barthes



I/Rosto de menino

Podia retocá-lo
com o verde desta tarde,
com o verbo deste lápis,
com o vento na janela.

Eis o termo da linhagem:
monstro ou borboleta
arrastando nosso cadáver.

Há um ricto
escondido nessa catástrofe.
O rosto acolhe uma filiação incerta.


Serpente tudonada

Aos hóspedes não convém
senão desfazer as malas
e vigiar as nódoas na parede.

Esgotou-se o tempo
de arranjar a sintaxe
dos talheres,
de repetir o ricto
após o último verso,
de empilhar os jornais
sobre a escrivaninha,
de recolher no pires
o farelo de pão,
de calçar as meias do avesso,
de ajeitar a gravata
dos amigos, de adiar o jardim
para depois dos quarenta.
Aos hóspedes convém esquecer,
conquanto em mim distraídos.
O corpo e as cidades



Das cidades

em geral

De quantas cidades estive
(e não digo as que, de passagem,
guardei apenas uma rubrica
e o rumor do jornal dormido,
nem aquelas em livro escritas
ou contrabando dos amigos,
em cartões-postais e souvenirs)
poucas vestiram este corpo,
camisa feita de encomenda,
sem rugas, pences, rebordos.



De Diamantina

De quantas cidades estive,
Diamantina tem o tamanho
do corpo com que se ama e vive,
com folgas e bolsos largos
para acolher-nos no regaço.
Tem os olhos da altura do homem,
e ruas que arregaçam as mangas,
e pátios de pássaro destros,
e capelas que erguem as saias
para deixar fugir o céu.


Conversa na alfaiataria

Aos meus tios, alfaiates

Aviamento

- Em tal ofício, menos não se admite,
ainda que a obra seja para o cabide,
não descura a severa matemática.

Nem cós nem colarinho aqui se avia
como se fora rol de mercearia,
pois, à roda do metro (diz a prática),

um corpo recusa, menino e agreste,
a cifra com que confirme e ateste
a medida do homem e a sua hora.

- Pouca ou nenhuma serventia terá
o método que queira abolir o azar.
Trata-se de pôr o número à prova,

de repetirum gesto até a diferença,
da lei que todo labirinto ostenta,
até que o olho em horizontes desdobre-o.

Corpo é como ter o mar na gaveta,
um cômodo a cumular nossas perdas,
uma pausa conspirando o relógio.



Das palavras

e dos gestos

Palavras apenas as que contam.
Para histórias do começo,
quando homem falava.

Mesmo um gesto demora,
até que o músculo
substantiva.


De Deus

Quem diria que há?

Por mim ficava longe
que eu não tenho estatura.

O medo de quem vê
pela primeira vez
uma palavra doendo.

fernando fábio fiorese furtado

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