Era uma vez…
Um rio
Que de tão vazio,
já não era rio
e nem riachão,
tão pouco riacho.
Não era regato,
nem era arroio,
muito menos corgo.
Era uma vez…
um rio
que, de tanta cheia,
já não era rio
e nem ribeirão.
Era mais que Negro,
era mais que Pomba,
era mais que Pedra,
era mais que Pardo,
era mais que Preto,
bem maior ainda
que um rio grande.
Era uma vez…
um rio
que de tão antigo
era temporário,
era obsequente,
era um rio tapado
e antecedente.
Que não tinha foz,
que não tinha leito,
que não tinha margem
e nem afluente,
tão pouco nascente.
Mas que era um rio.
Não era das Velhas,
não era das Almas,
não era das Mortes.
Era um Paraíba,
era um Paraná,
era um rio parado.
Rio de enchentes,
rio de vazantes,
rio de repentes:
Um rio calado:
Sem Pirá-bandeira,
Sem Piracajara,
Sem Piracanjuba.
Em suas águas
não havia Pira
não havia íba,
não havia jica,
não havia juba.
Nem Pirá-andira,
nem Piraiapeva,
nem Pirarucu.
Era um rio assim:
Sem pirá nenhum.
Mas que era um rio.
Era uma vez….
Um rio.
Que, de tão inerte,
Já não era rio.
Não desaguou no mar,
não desaguou num lago,
nem em outro rio.
É um rio antigo,
que de tão contido
não é natureza.
Um dia foi rio,
há muito é represa.
Antônio Roberto Góis Cavalcanti(Kapi)
“O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra,
e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida
e o homem se tornou um ser vivente”
gênesis (2.7)
epifania
(p/ euclides, yeats e soffiati)
guiava a picape pela montanha
entre curvas da estrada e do rio
que ambos seguiam à planície
na qual não nasci, mas habito
desde quando aprendi a pisar
e a montanha nas suas certezas
de subir e descer no caminho
falou-me na língua das pedras
de onde brotam as águas:
— decifra-me ou te desfaço!
feito do barro massapê
sobre o qual caminhei a vida
tendo o plano por destino e partida
consultei as cores do crepúsculo
que, melancólicas, se riram de mim:
— de onde vens? — indagaram-me as cores
— de cambuci, refúgio dos puris!
— para onde vais?
— aos campos dos goitacás!
— o que corre ao seu lado?
— o rio!
— e para onde corre o rio?
— ao mar!
e riram-se de novo as cores:
— pois então!
a montanha, descontente pela ajuda
escondeu o sol e exilou as cores
antes que se voltasse a mim, respondi:
— não te decifro, sou você
sou teu barro, que o rio lava,
carreia e forma a planície
sou o que deságua no mar e o escurece
meu templo não se ergue na pedra
mas no que nela colide e desprende
não me desfaço, transformo!
atafona, 04/06/2000
closer
(p/ branca)
ao volante da picape,
um naufrágio de torpedo
atravessa damien rice,
à imagem do seu canto.
o hermético, dos ventos,
dita planos diferentes,
à longitude dos destinos
entre a foz e o afluente.
um coração em déjà vu,
quando partido, se areja
pelo sopro da janela
no motorista que acelera
e, de leveza, até sorri,
ao notar entre seus dedos
— acaso do tato no ato final —
aquele fio longo de cabelo,
só e sangue como o sol.
passa a musa e o chapéu:
“i can’t take my mind…
my mind… my mind…
til i find somebody new”.
atafona, 05/07/08
angelical
as ondas, o grilo, o galo
dão vozes ao frio
esgueirado nas frestas
do mantra oculto no crânio
o eco do nome dela, banido
escapa da boca no grito
a furo, da alma
esse pus aquece o corpo
mais que o edredom
atafona, 17/07/06
elenismo
onde começa a planície
à margem direita da foz
reflete à míngua um egeu
de sede da sua língua
maresia dos corpos jogados
oxida entre dedos de dédalo
o cheiro dela que esvai
e volta à memória em marés
pelo sol imolado na praia
do sacrifício por afrodite
nos meus criem o credo
daqueles olhos oblíquos
atafona, 07/06/08
aurora
dia desses, madrugada alta
insone, acordei a mulher
para matar saudades do adolescente
ébrio, na beira da praia, à espera do sol,
que buscava ouvir o mar chiando ao parir brasa
acompanhado, reconstituí a cena
tendo como elemento novo, além da mulher,
a barricada baixa de nuvens no final do horizonte
deflorada lentamente pelos dedos róseos do poeta
ela olhou e disse que as nuvens pareciam algodão doce
pensei e a mim lembraram ilha grande
que quando avistada da ilha seguinte
vê-se não ilha, mas continente;
imaginei após a amurada interna do forte
dos que querem manter como está
e já saem à guerra vencidos;
recordaram-me também a serra do imbé
fazendo fundos com a planície dos extintos
lhe dando vértebras;
ou ainda a conseqüência do recife
no qual convergissem todas as ondas do atlântico
açoitando a pedra e espalhando espuma
como o cheiro do quarto no amor
o sol nasceu entre nuvens e metáforas
contemplei-o até a cegueira
beijei a mulher e me despedi de homero
que fez do ouro seu anel de noivado
e saiu comendo algodão doce
atafona, 15/04/2000
pacto
com a cadela nova na coleira
contei quatro saltos do peixe
à beira mar, sem ninguém
não vi o que viveu antes o peixe
ou o que viveu depois do quarto salto
na verdade, não o conhecia
com a cadela, se vivermos
sem cair nas redes nossas
talvez partilhe visões outras
tivemos os três aquele momento
com ninguém mais à beira da praia
e a cadela me seguiu sem a coleira
e quase entrou no mar do peixe
atafona, 14/05/2000
moinho
vento balança copa
nogueira
vento que venta mais
na beira
vento lá da maré
é cheia
vento que canta e chama
sereia
vento em lua nova
inteira
vento de céu aberto
esteia
vento que traz barulho
traineira
vento de maresia
permeia
vento que volta o cuspe
bobeira
vento transporta duna
carreia
vento que sopra à face
tonteia
vento na capoeira
volteia
vento que corre o rio
na veia
vento que traz o mar
atafona, 28/12/99
Aluisio Abreu Barbosa
Rio à míngua
Outrora, em tempos outros,
tudo que hoje é habite-se
pertenceu ao que se diz
ser a imensidão do mar.
Até que um dia, o Paraíba,
buscando destino cumprir,
rasgou as entranhas da serra
para a planície formar.
E fez-se istmo primeiro,
entre golfos e brejais.
doces e feias lagoas,
d’uma beleza sem par.
Assim se fez a baixada.
Assim se fez São João,
do Açu a Atafona.
Do delta em pé de ganso
Fez-se um pontal de paixão.
De Gargaú, Guaxindiba,
às margens do Itabapoana,
dos goitacá, a nação.
Mas o rio que nos deu vida
o homem um dia sangrou
transformando-o em ferida,
cerceando-lhe a vazão.
Minando-lhe todas as forças
para os embates com o mar.
Transformaram em Guandu
o Paraíba do Sul
desviando-lhe as águas.
Semeando em seu leito,
do Egito, as sete pragas.
E no Pontal um lamento
Que traduz nosso tormento
em ver o rio minguar.
Antônio Roberto(Kapi)
travessuras
(em parceria com dora)
cana e açúcar no ar
chaminé fumando elegante
no horizonte da planície
que um dia foi
e um dia volta a ser
do mundo do silêncio de costeau
campos, 28/06/97
tempo
ver Deus olhando nuvens
do pôr do sol da praia
sopro do vento nordeste
virando terral
virando o mar
virando outro cheiro
virando o tempo
mas tempo é tempo
é nada mais
é só tempo
tempo da morte
tempo da vida
crediário duma
prestação doutra
território do ponteiro
demarcado por mijo monótono
comum lugar do tic
perseguido por tac
e amanhã tem que acordar cedo
pra trabaiá
atafona, 08/12/95
estiagem
depois da chuva são moscas
mosquitos obstinados à caça de sangue
depois da chuva são poças
cheiro de terra, ciclo de rastros
depois da chuva são sapos
corte a amantes dentro do mato
depois da chuva são cantos
folhas mais leves prenhes de pássaros
depois da chuva são vidas
formas moldadas no meio da lama
depois da chuva são gotas
pendendo em extinção da borda da telha
depois da chuva são cores
reflexos de luz na umidade do ar
depois da chuva?
a gratidão é verde depois da chuva
atafona, 05/12/2000
duas luas
(p/ lívia)
a nuvem escorre
pela lua cheia
como o tabaco
e o amor
entre os dedos
somem, consomem, secam,
vão
semeando cheiros
e lembranças
no álbum de retratos
à senha dos uivos
viro o corpo na cama
do quarto escuro
mas a lua me contorna
dobrada nos olhos dela
campos, 17/04/06
deriva
o navegador diz que liberdade
é diferente de estar à deriva
como sereia nunca me contou
se navegar é necessário
ou só demanda precisão
sigo a corrente
sem ver nisso prioridade
sentindo, roendo unha
pondo de lado as latitudes
ainda que as perceba
atafona, 14/11/95
muda
a memória sai da toca
sobe pela palafita
ainda escorrendo lama
e me fita
com olhos de caranguejo
entre as tábuas do piso
do bar do espanhol
quando o pontal era ponta
tinha fé de igreja
e luz de farol
na boca do mangue
passei minha rede de arrasto
mas só peguei filhotes de bagre
que me ferraram o pé
ao chutá-los de volta à água
até que pedro me ensinou
a pegar pitu de mão
entre raízes do mato
na beira do alagadiço
hoje passo no mangue
e não piso na lama
mas na asfixia lenta
dos aterros do homem
e do avanço do mar
perto das ilhas da convivência e pessanha
siamesas da mesma terra
onde ficou minha casca da muda
de caranguejo a espera-maré
atafona, 06/2000
“vasto é o mar, espelho do céu, querida
belo é o jovem mergulhador na ida” (tom jobim)
espelho
(p/ paulo, luís e jacques mayol)
acredito no céu
que quando morrer vou pra lá
num céu de einstein sem newton
onde os mares flutuam
sobre cada estrela por grão
e os anjos que descem
são golfinhos saltando
atafona, 13/05/2000
conversão a mais de uma atmosfera
quando estou lá embaixo
esbarro comigo mesmo
sem dar de ombro
é em mim o tiro que miro
do arpão que zune nas águas
e rasga escamas
e carnes de pouco sangue
não vejo Deus vendo acima
só abaixo
perdido em arquiteturas
e faço parte d’Ele
refém do fascínio
de quem habita a zona morta
do meio do esquadro
atafona, 20/03/96
Aluisio Abreu Barbosa
Manchete de jornal
(Mar atinge Caixa D’Água em Atafona)
Não bastava todo o concreto
debaixo d’água
agora o mar também
tem sede de água
Não bastava a nossa nostalgia
agora o mar também nos arrebenta
os matando de agonia
Não bastava não caber
em meus olhos
o rio beijando o mar
de pernas abertas
esculpindo de vazio
o pouco que nos resta
Não bastava ser
Quase do tamanho
Do Principado de Mônaco
agora o “Moinho de Ventos”
quer se fazer rei… e eu… um bobo da corte
não bastava os artistas plásticos
arquitetos, sambistas, cachaceiros
compositores, poetas, garçons, putas e cantores
camisa de Vênus… luau
sexo sem culpa… uau…!!!
violões de forca
agora nos colocam na parede
com camisa de força
Atafona é de enlouquecer
um dia, reduto da oposição.
No outro, eterna comunhão
Ainda tem Carlinhos Pisca-Pisca
Com seus olhos que não param
Malacacheta se foi…
Ruínas ruiu…
Mas Elvis continua
na briga com a sereia
entre pedras, vergalhões e árvores mortas
Terra de eternas Elisabetes
Aflitos Erenitos
Doidas Doras
Inseguros Aluysios
Inconstantes Caetanos
Apaixonadas Adrianas
Transcendentais “Lulus”
Musicais Nanis
Perdidas Cláudias
E dá-lhes São Jorge
João, Renatos
maresia, caju e cana
Esta saudade estrelada
sob o céu de nossas camas
não bastavam os caranguejos em procissão
marolas, pipas e pontal
A magia nos permite
fazer um ritual…
Apertar um bom
Ouvir histórias
Conviver na ilha
No beiral do rio
Juntar minhas viagens
No que foi e no que poderia ter sido
Atafona é cenário perfeito
para todas as misturas
para todas as tendências
Mar para todo braço
Rio para todas as possibilidades
E o Pontal
Quase que encolhidinho
Dentro do meu campo visual
Converte-se em proscênio
pro ato final
Não bastava ser assim
Agora resta no ar
Uma aura de pecado
Onde nem os peixes ficarão impunes
Ainda é costume
Se fazer de boto
Pra não ficar isolado
Ainda há meninos sãos
Pra todos os lados
Ainda freamos o mar
Como o nosso tesão molhado
Ainda sentimos frio lá na curva
Onde, hoje, habita Neivaldo
E ainda viveremos mais verões
Bastando-nos, apenas, entender
Que a natureza sempre teve, tem
E terá suas razões…
— Pode jogar a rede !!!
Adriana Medeiros
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