segunda-feira, 9 de maio de 2011

A OUTRA HISTÓRIA DA ROSA (II)



A rosa tatuada,

ainda que posta ao alcance do nada,
sobrevive aos efeitos de seus espinhos,
quando se perde em pétala espalhada
por galhos secos da roseira em luto.
Cinzenta e violácea, tal figo em calda,
reveste-se de flor em fruto,
no que se assenta sobre o que respalda.
Diante do que se lhe avermelha
a rubor de paixão e sangue pisado,
ao pé do que se diz amado,
estende-se em jardim, insone e insistente,
inscrita a ferro e fogo em pele ardente,
na pressão do dedo – cravo em riste
que a transporta em trilha de caminho torto
quando se abre em rota insana e triste
– legenda de amor em perda e aborto.


MAR AMAR

A onda que chega e que some é espuma,
que se estende n’areia em toalha de bruma.
É teia se fazendo num sopro de vento
que alimenta e suspira meu último alento.

Depois que a luz se faz manhã de paz em dia,
como gota de sal ao temperar o peixe,
em milagre,distribuo pão e maresia,
antes que a paixão por aqui, então, me deixe.

E vou inventando cidade à beira-mar,
nos poros da terra em que enterrei tolos sonhos,
enquanto me inundo em dunas de azuis risonhos.

Navio e âncora, penso em te velejar,
afundar-te na maré que me experimenta,
indo e vindo na saudade e na tormenta.


O TIRO PELA CULATRA

Não, a mulher de verdade não sou eu.

Mas a abelha rainha

que se encontrou n´algum rei,
que se deu no que serei
de mar azul e noite de lua,
vindo-a-ser sereia.

Não, a mulher de verdade não sou eu.

Nem a que se virou, toda sua,
em dona de bordel,
no que será que se deu
por noite escura, claro céu.
E nuvem, manto em solidéu.
Não, a mulher de verdade não sou eu.

Abelha por mel e sol,
Solidão em dia que não transcorreu,
flor e feto lacrado em formol
da mulher que, de verdade,
não nasceu. Nem sou eu.


CILADA

Embaixo da escada, passei várias vezes,
por malquerer e sorte
— desavisada.
E depois, sem mais que nada,
por dor, paixão e morte,
inscrevi destino e sina — reveses.

Recebi do azar dotes e porte,
em primeira mão,
de sim em sim e não em não.
E fui seguindo, sem noite nem seita,
varando a madrugada,
embora sabendo de uivos e lobos, à espreita.


AÇÚCAR

é verde e veio
de cana caiana
sangrando
o suco operário
de muitos suores
e caldos
melados
fermentos
cachaça
melaço
e canaviais
roçados
de calos
nos pés e nas mãos
e bóia fria
marmita
— aceiros intermináveis
e joios e pedras
e foices
e folhas secas
estalando miséria.


DIÁSPORA

No útero da mãe África
fervilham seios que amamentam os filhos do amanhã
e costuram os tecidos da verdade temporã na América
de tantos escravos e navios negreiros aportados
na escuridão de brasis, jamaicas, cubas e haitis
– todos mortos pelas terras e serras maestras
de amanheceres construídos com baionetas e fuzis.

Em portos ricos e bahias, cantaremos a sorte
da sobrevivência sobre tanta morte.
No encontro com a terra te elegeremos – ilê-ayê,
e flutuaremos, como velas nascidas da renitência,
em aflitas razões, racismo e resistência,
ao som de atabaques, tambores e tamborins
e também assim faremos um samba na Mangueira
ou entoaremos um blues em New Orleans.

Vasculharemos tudo: instintos, sentimentos, religiões,
raízes indevassadas e meras intuições.
De onde nos tiraram as verdades,
sucumbiram saudades e lamentos.
E depois, ainda mais escravidão.

No ruir de tudo, memória e banzo.
O novo mundo é quando?

AMÉLIA ALVES